Por Andréa Almeida, do Portal Cultura PE

Emprestando brilho aos olhos de quem a alcança e florescendo os terreiros mais desertos que há de se encontrar, a Quadrilha Raio de Sol tem mesmo o poder da multiplicação. A mania de grandeza pernambucana é o mantra dos que a fazem com garra e tanta paixão, em alto e bom som: “Ano que vem vai ser ainda melhor!”. E promessa é dívida que se cumpre. Por onde passa, os seguidores novos e antigos, fervorosos, esgotam ingressos, preenchem cada espacinho lhes dado só para sentir na pele aquele irradiar.

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No palco, um brincante mirim vestido de estrela guia anuncia a “abrição das portas”, a Raio de Sol 2025 vem aí. E é de arrepiar. Imbuída pelos movimentos do maracatu rural a rodar pelo salão, a estrela abre alas para os três brincantes incorporados por uma noiva, um noivo e um marcador, que logo mostram a que veio o batalhão da quadrilha junina que no ano passado conquistou o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco: “Ô de casa, ô de fora, São João nasceu! Xangô menino, dono da justiça e da festa! Nossa folia é de reis e de rainhas também!”.

Foto: Luiz Felipe Bessa/Secult-PE/Fundarpe

O tema que este ano inspira o figurino, o cenário, a dança e a legião de guerreiros que se dedicam o ano inteiro é “Um Reisado a São João”. Com esse espetáculo, a Quadrilha Raio de Sol renasce e vibra no coração do público que vive a experiência de uma, pode-se dizer, tradicional ópera junina, a brilhar durante todo o festejo que celebra o plantio e a colheita nos campos rurais.

E por falar em renascer, este ano a Raio de Sol chega com uma “novidade antiga”. Pode parecer paradoxal, mas é o que tem enchido de orgulho, derramado lágrimas e emocionado de uma forma diferente brincantes e fãs da quadrilha: 2025 marca a estreia, ou o retorno, da Quadrilha Raio de Sol Mirim.

Fundada em 1996 por Alana Nascimento e Boni, o marcador da época, o grupo surgiu em Águas Compridas, município de Olinda-PE, como brincadeira de criança em uma escola da comunidade. Ao passar dos anos, os pequenos cresceram e a quadrilha também, amadurecendo como adulta. E assim, despretensiosamente a princípio, foi ganhando corpo e formando centenas de jovens da periferia em talentosos artistas e estudiosos da cultura popular.

De lá para cá, foram milhares de mãos costurando indumentárias, mentes brilhantes imaginando cores, sonhando temas, pesquisando referências, engajando a comunidade e fazendo acontecer. Hoje, há pouco mais de um ano da inauguração do Centro Cultural Raio de Sol no bairro do Hipódromo, agora no Recife-PE, a quadrilha resgata a sua essência com a criação da Raio de Sol Mirim. Uma espécie de vale muito a pena ver de novo a história sendo recontada e a brincadeira perpetuada.

“Agora a gente diz que recriou a mirim, né? Pra mim essa mirim agora é um resgate muito grande, porque são filhos de quem já dançou, minha neta tá dançando aqui, minha sobrinha dança aqui, e assim, é como se eu estivesse revivendo tudo de novo”, expressa Alana Nascimento, fundadora e diretora da Quadrilha Raio de Sol. “Eu chorei demais, para mim eu estava vendo meus filhos ali na quadrilha mirim. É muita emoção!”, reafirma Rute Andrade, que junto com Alana se dedica desde os primórdios ao grupo, também como diretora e responsável pelos adereços de cabeça.

As vidas de ambas se confundem com a Quadrilha Raio de Sol. Enxergando de perto, elas são a própria Raio no corpo de mulheres que, aliás, já guerrearam muito no campo político do afeto e do amor para acolher crianças, jovens e transformar realidades que vão muito além dos resultados aplaudidos em junho. O São João é o ano inteiro para muita gente que através da Raio de Sol conquistou autonomia e protagonismo para narrar a própria história.

“A missão do continuar”, como pactuam os brincantes, é semente que germina a Raio de Sol Mirim em 2025, perpetuando a identidade e enraizando a memória do grupo. E a ideia surgiu da vontade de uma representante das crianças, Lia, de 6 anos, filha de Leila Nascimento e que por sua vez é filha da fundadora Alana Nascimento. “Com a Raio de Sol Mirim e o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, eu sinto que agora a nossa quadrilha é para sempre. As crianças dançando coco, xaxado, ciranda, maracatu… É uma herança viva. Isso é futuro. Isso é raiz que cresce”, enfatiza Leila, que dança na quadrilha desde pequenininha e hoje é diretora artística e coreógrafa do grupo.

Foto: Luiz Felipe Bessa/Secult-PE/Fundarpe

Com a força das três gerações de quadrilheiras, o tema do espetáculo de estreia da Raio de Sol Mirim é “Um São João Salustiano”, homenagem ao Mestre Salustiano, ícone do maracatu rural, da rabeca, fundador do Maracatu Piaba de Ouro e que em 2007 também foi reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco. Sem spoiler, mas o público se surpreende com a presença de Salu na energia dos movimentos, na rabeca, na alegria e no imaginário que remete ao maracatu rural. Tudo isso interpretado com a genialidade, a magia e a pureza dos brincantes mirins, que arrancam suspiros e aplausos da plateia com tanta graça e talento nato.

Já a Raio de Sol Adulta bebeu na fonte dos Reisados – expressão da cultura popular de herança ibérica, como a quadrilha junina espalhada Brasil afora, especialmente no Nordeste. Os brincantes transformam o lugar da louvação em arraial para dar vivas e presentes a São João, mesclando anavantus e “abrição de portas”, “passeio na roça” e cortejo, rodas e adoração, anarriês e retiradas. Exibindo toda a exuberância e riqueza da cultura popular, o figurino é carregado de simbolismo e significado abusando de referências das duas manifestações tradicionais, com coroas aplicadas em chapéus de palha, sanfona, viola, espadas, fitas, espelhos, rainhas e reis, que, no enredo, contam a história de um noivo que foge a todo custo do casamento e de uma noiva que com muito humor consegue enlaçar o coração do rapaz.

Comicidade, drama, guerra e, enfim, romantismo. A contemporaneidade da narrativa aparece através da fala de uma brincante mirim no espetáculo, que solta com sagacidade para a noiva-rainha: “E você levanta a cabeça porque se não a coroa cai, rainha!”, empoderando a noiva. A quadrilha infantil tem participação especial na apresentação da adulta. O espetáculo “Ô de dentro, ô de fora” faz um “salve” a Dona Jacinta e a Gonzaga de Garanhuns, mestres do Reisado e também Patrimônios Vivos de Pernambuco.

“A gente estudou os Reisados do nosso Estado e pensou: e se São João tivesse nascido no próprio Arraial? A gente chega pra festejar esse nascimento e oferecer presentes — espelhos, fitas, sanfonas. Essa é nossa forma de louvar”, conta Leila Nascimento. Este ano, ela interpreta Jacinta como a noiva, personagem inspirada na mestra Dona Jacinta. “Ela foi uma mulher que dedicou a vida ao Reisado. A gente homenageia sua trajetória com afeto e poesia. Mas a nossa Jacinta quer casar. É uma personagem leve, engraçada. A gente usa a dança das espadas, típica do Reisado, para narrar o embate entre o desejo dela e o medo do noivo. No fim, o amor sempre vence”, revela.

Tradição reconhecida por Pernambuco

Em 2024, as quadrilhas juninas ganharam categoria exclusiva no edital de premiações culturais da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), através da Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco (Secult-PE). A inclusão dessa categoria específica ocorre em um momento de grande valorização da tradição junina no País. Também no ano passado, as quadrilhas foram reconhecidas como manifestação da cultura nacional por meio da Lei nº 14.900, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A conquista representa um importante marco simbólico, que insere as quadrilhas no mesmo patamar de outras expressões brasileiras já reconhecidas, como o forró e as escolas de samba.

Foto: Luiz Felipe Bessa/Secult-PE/Fundarpe

Em Pernambuco, a importância das quadrilhas juninas vai além da festa. Atualmente, estão em processo de reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado, através da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), reforçando sua relevância como manifestação viva da cultura popular. O Estado conta com 121 grupos cadastrados na Federação das Quadrilhas Juninas e Similares de Pernambuco (Fequajupe), mobilizando mais de 12 mil brincantes em todas as regiões — do Litoral ao Sertão — e envolvendo cerca de 4 mil profissionais diretos e indiretos.

“O Patrimônio Cultural Imaterial é reconhecido como práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que fazem a gente entender um conjunto de saberes e fazeres transmitidos entre gerações. E as quadrilhas estão no processo de conquistar esse título, por sua importância sociocultural seja em ambientes de concursos e festivais, ou em arraiais de bairro e práticas familiares.

Além disso, as quadrilhas tem uma importância econômica muito forte, por não só envolvem músicos e dançarinos, mas também maquiadores, costureiros, pessoas que fazem adereços, designers, cabeleireiros, coreógrafos, entre outros profissionais. Outra forma de o Governo de Pernambuco reconhecer e incentivar essa manifestação cultural é o título de Patrimônio Vivo, sendo a Quadrilha Raio de Sol o primeiro grupo titulado no Estado nesse segmento”, ressalta a gerente de Patrimônio Cultural Imaterial da Fundarpe, Lana Monteiro. Em Pernambuco, já foram concedidos 105 títulos de Patrimônio Vivo, entre mestres, mestras e grupos culturais.

Do salão europeu ao terreiro nordestino

A quadrilha junina que hoje é símbolo da identidade nordestina nasceu longe daqui. “As quadrilhas juninas têm origem nas danças de salão europeias, como o quadrille francês, que chegaram ao Brasil com a corte portuguesa no século XIX. Com o tempo, o povo do interior brasileiro apropriou-se dessa linguagem, transformando uma dança aristocrática em expressão da cultura popular”, explica o antropólogo Hugo Menezes, professor da UFPE e pesquisador da tradição das quadrilhas juninas.

As quadrilles, polcas, mazurcas e valsas foram ressignificadas nos terreiros nordestinos, tornando-se celebrações da colheita e da fartura. Durante o século XX, com a urbanização, o “matuto” virou personagem caricatural: o dente pintado, a roupa remendada, o campo como sinônimo de atraso. Mas a partir dos anos 1980, especialmente em Pernambuco, as quadrilhas começaram a se reinventar. Abandonaram a estética pejorativa e passaram a exibir luxo, orgulho, ancestralidade e arte. A quadrilha deixou de ser “matuta” para se tornar um dos maiores espetáculos públicos do Brasil.

E é como os brincantes da Quadrilha Raio de Sol dizem por aí: “Pessoas como a gente não morrem, se eternizam no terreiro do brincar”.

 

 

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