Por Josué Santos* 

Eu canto porque o instante existe. E minha vida está completa. Não sou alegre, nem sou triste: sou poeta.

Aprimeira vez que tive acesso a alguma forma de poesia, como me lembro, foi quando “topei” com esse poema de Cecília Meireles em um livro empoeirado na estante da sala de casa. Eu me aventurava nessa estante folheando livros e revistas de meus pais, querendo descobrir o mundo.

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No instante que tive acesso ao texto, o mundo da poeta cravou sua arte no meu peito. Em mim ganhou forma, contraste e outras interpretações. Eu tinha por volta de dez anos de idade, e nunca esqueci essa estrofe, que segue comigo até os dias atuais. Meireles nos deixou no ano de 1964, mas ainda vive por meio de sua escrita crítica, surrealista e parnasiana. Ela sobrevive também na fala e nos gestos de seus interlocutores, e seu texto é reimaginado e reinventado à medida que sua poesia ocupa mais espaços. A poeta revive sempre que seu texto é lido.

Desde a mais tenra idade, quando Motivo (nome desse poema de Cecília Meireles) e eu nos encontramos, um novo texto começou a ser escrito em mim e através de mim. Eu saí das formalidades que me eram apresentadas na escola, isto é, os textos estruturados em um formato “erudito”, e encontrei o texto que se mantém após sua leitura, isto é, a reflexão, que se deriva de uma escrita bagunçada, “suja” pela pessoalidade de seu autor, que traz consigo não apenas os sabores da vida, mas os escárnios que lidamos ao enfrentar os demônios dos quase amores, dos boletos, do calor, do frio que nos assola, do trânsito que não se move ou dos horários curtos de almoço que a CLT nos permite ter, enfim, das dores e amores de viver a vida. Eu encontrei o texto. Eu encontrei poesia.

Da minha maneira, essa era minha forma de revolução, uma noção de intelectual escarnecida pela padronização do que era considerado culto e pela marginalização das firulas e figuras do cotidiano. Indo das ideias revolucionárias de Hamlet a Gramsci ou do idealismo de Hegel ao materialismo de Marx, as formas por que eu me apaixonava na história e na leitura eram os bordões, as mazelas e as fragilidades das linhas poéticas, e não as regras estabelecidas pela cultura eurocêntrica. A escrita polida por esse regime, a meu ver, é opressora, ela reprime porque busca isolar as subjetividades, excomungando-as do recinto de seu clero epistêmico.

Ok, deixe-me colocar uma coisa clara: regras e normas são úteis para quem precisa delas, ou nos momentos que elas se fazem necessárias, isto é, em uma escrita científica específica ou mesmo em uma linguagem religiosa. Mas, no geral, elas são um tormento para quem habita a boemia: “Deixe que as massas leiam sobre ética e moral, mas pelo amor de deus não dê a elas poesia para estragarem”, disse o poeta Stéphane Mallarmé uma vez. Assim, eu me apaixonei pelas palavras e pela ideia das coisas escritas. Essas coisas pulavam em solavanco de meu peito ao texto narrativo em diferentes momentos aleatórios do cotidiano: enquanto cozinhava, enquanto estudava uma outra coisa, enquanto tomava banho.

Que tormento! Parar tudo e se deixar levar pelo texto, não tenho controle algum. Deixando-se ir até onde as palavras permitiam, mudando agendas e cronogramas para ajustar ao nascimento da escrita narrativa. Maior tormento ainda era não poder fazer isso, quando em meio a uma reunião ou outro evento ad hoc, impossibilidades surgiam. De fato, nem sempre quando o texto chegava a mim eu estava preparado para retirá-lo do depósito do mundo das ideias e trazê-lo ao mundo físico, e com o tempo eu percebi que se perdia em meio aos cronogramas e agendas do dia a dia.

Dessa forma aprendi que quando sou impulsionado à escrita, preciso escrever, pois já não sou eu que escreve, mas o texto em mim que abre espaços e conclama sua existência: “Voilà!

Esses textos são como brados de minhas inquietações, traumas, memórias e opiniões sobre a vida e sobre as coisas. São as “Eurekas” e os “bazingas!” que explodem sua narrativa nos mais variados momentos, do ócio às lidas, das lavouras aos casebres, dos pomares às colheitas, do campo ao urbano. Seja onde for ou como for, o texto sai, ele precisa sair, conclamando sua existência por meio de um big bang literário, tornando possível o imaginário ser concebido e acessado.

A expressão “Eureka” foi pronunciada por Arquimedes, matemático grego que tinha um complexo problema em mãos a ser resolvido, proposto pelo rei Hierão II. A história conta que, após muito pensar e não chegar à conclusão alguma sobre o problema científico, seguiu a vida, sem tirar o foco da busca por uma solução. Um dia foi tomar um banho e no momento que a água subia-lhe enchendo sua banheira, a resposta que precisava emergiu nele do mesmo modo. Saindo imediatamente do banho, nu e gritando pelas ruas, em direção ao rei, a famosa expressão, que significa, em termos livres: “Encontrei!”, ganhando não apenas o apreço do rei, mas um termo científico galgado até os dias atuais: O Princípio de Arquimedes.

Fui então me tornando escritor. Inquieto das cadeiras, pensante do verbo solto, um Arquimedes correndo pelas ruas desnudo de suas roupas e de seus crivos.

No desenvolvimento das ideias e na confusão ortográfica, onde residem equívocos entre o verbo conjugado e o infinitivo, nos pleonasmos populares e nas incongruências das ideias textuais, eu aprendi a amar o texto, não mais a temê-lo (referencio aqui Maquiavel, trazendo-o para o contexto literário e desprendendo-o das economias, políticas e governos em que foi concebido, isto é, no clássico O Príncipe).

O texto, quando “parido” em mim na função de escrito, de projetado no mundo, é como a transformação da antropologia de gabinete, na sua fase “o ramo de ouro” de James Frazer, à antropologia de campo, com Os Argonautas do Pacífico Ocidental de Bronislaw Mallinowski. É como o sair detrás das mesas, dos papéis e ofícios teóricos, e ir até os sujeitos, conviver com eles e fazer a pesquisa com eles, nas suas aldeias, nos seus chalés, nas suas danças. Uma escrita isolada, porém conjunta. Quando a ideia me traz uma narrativa, preciso deixar correr solto, como o cavalo selvagem de Eliakin Rufino, poeta roraimense:

eu sou cavalo selvagem / meu pasto é o campo sem fim / para mim não existe cerca / sigo somente o capim / eu sou cavalo selvagem / selvagem é minha alegria / de ser livre noite e dia (…)

É preciso então parar tudo, o banho, o sono, a respiração, e escrever. Antes de ser texto, ele é uma ideia. Essa ideia transita muitos lugares, não lugares e entrelugares. Em alguns momentos, fixa residência temporária, lar dos boêmios e inquietos pesquisadores como eu, mas nunca permanência. O texto é móvel, mas ronda, principalmente, o ordo cognoscendi (isto é, as coisas como as conhecemos) e o ordo essendi (isto é, a realidade, as coisas como são, independentemente de como as interpretamos). Isso, no final, é texto, é poesia, é arte.

Escrever o texto inspirado é deixar continuar a poesia que se escreve e inscreve no autor no seu cotidiano, e frutifica em seus leitores. Como disse Chico Buarque em O Irmão Alemão: “Sacudir um livro do meu pai é como soprar um cinzeiro”, ou seja, saem cinzas, espremem-se sentenças, camadas, cosmovisões. Por isso, um texto nunca está completo, mas está sempre se reescrevendo em si mesmo, nos outros, e nos poetas adormecidos que talvez ainda nem saibam que são.

Segundo Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem, toda expressão linguística é moldada pelo diálogo com outras vozes e discursos presentes na sociedade. Cada enunciado, ou seja, aquilo que proferimos, é uma resposta a enunciados anteriores e uma antecipação de enunciados futuros. Assim, estamos sempre em diálogo: com outras pessoas, com livros, com imagens, com narrativas, enfim, um jogo dialógico: uma multiplicidade de vozes, perspectivas e significados presentes nas interações comunicativas e que são permeadas por antecedentes que os compõem, ou seja, discursos e enunciados que são evocados a partir do meio social do indivíduo, que por sua vez incorpora-se de um tempo e espaço que em alguma instância o reproduz.

Ter uma ideia e não escrevê-la é deixar morrer os afetos, as inspirações, as continuidades. É fechar as brechas que se abrem a novas possibilidades. Como está inscrito no livro Harry Potter e As Relíquias da Morte: “O fogão está acesso, mas o caldeirão está vazio”. Assim, vamos encher nossos textos, nossas páginas, nossos caldeirões, nossas agendas e nossas vidas com as palavras ditas, não ditas, entreditas, soltas, presas, leves, pesadas. Vamos escrever a história, sobretudo a nossa história, nos livros, nas manchetes, nos diários, nos banheiros de rodoviária, nos jornais, nos chuveiros. Vamos fazer barulho!

*doutorando na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP – do Jornal da USP 

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