Por Gabriel Costa, especial para o Fringe

Em 1965, o cinema brasileiro vivia um momento decisivo. Era o auge do Cinema Novo, movimento que buscava retratar as contradições sociais do país, ao mesmo tempo em que propunha uma linguagem cinematográfica autenticamente nacional.

O lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” impulsionou cineastas a ousarem na forma e romperem com as convenções do cinema comercial hollywoodiano. No mesmo período, o Brasil enfrentava grave crise política. Um ano antes, em 1964, os militares haviam derrubado o presidente João Goulart.

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O que começou como uma “transição” logo se transformou numa ditadura violenta, marcada pela perseguição a opositores, censura e repressão a artistas e intelectuais. O Brasil era um caldeirão de ideias, traumas e sonhos. Um lugar onde o tudo e o nada se encontravam de maneira única na mesma situação. Onde o cinema se tornou uma forma de protesto e seus artistas, revolucionários. Nesta época, não se fazia cinema, se arriscava cinema.

E algumas das obras mais importantes do país saíram neste ano. Há 60 anos, Leon Hirszman, Fernanda Montenegro, Eduardo Coutinho, Luiz Sérgio Person e outros nomes importantes do cinema nacional tiveram filmes decisivos em suas filmografias. Todos com algo em comum — além do ano de lançamento: foram exibidos na 1ª Semana do Cinema Brasileiro.

O evento, precursor do Festival de Brasília, surgiu como uma iniciativa do crítico e professor universitário paulista Paulo Emílio Salles Gomes, informado pelo mesmo espírito que impulsionou o surgimento do Cinema Novo, nome e conceito expresso em um manifesto escrito por Glauber e a fundação da Universidade de Brasília.

Para trazer olhares ao festival, Paulo Emílio selecionou e convidou estrategicamente personalidades importantes da sociedade brasileira como políticos, esportistas e intelectuais. Mas não foi o suficiente para impedir a censura. O filme “O Desafio“, do diretor Paulo César Saraceni, foi abstraído pelo governo por 6 meses e liberado pouco antes do início do evento.

O burburinho foi tanto que mais de 3 mil pessoas foram ao Cine Brasília assistir à estreia do longa. A Semana do Cinema Brasileiro foi um divisor de águas na história do audiovisual brasileiro e o Fringe conta abaixo a história dos seis filmes que fizeram parte da programação:

A Falecida

Baseado na obra homônima de Nelson Rodrigues, o filme é roteirizado por Leon Hirszman em parceria com Eduardo Coutinho. É também o primeiro filme de Fernanda Montenegro, que venceu o prêmio de melhor atriz na Semana do Cinema Brasileiro.

Narra a trajetória de Zulmira, moradora de um subúrbio carioca que, obcecada com a ideia de ter um enterro de luxo, enxerga na morte uma forma de compensar a vida miserável que levou. Ao contrair tuberculose, faz ao marido, Toninho, um último pedido: um funeral grandioso.

Sem recursos, ele procura Guimarães, o homem mais rico do bairro, que se recusa a ajudar e, sem saber que fala com o viúvo, revela ter tido um caso com Zulmira. A revelação desencadeia uma reviravolta marcada por chantagem e vingança.

Membro do “estado-maior” do Cinema Novo, Leon Hirszman usa uma linguagem que foge do realismo puro e aposta em planos longos, movimentos de câmera calculados e um uso simbólico do espaço. A fotografia em preto e branco ressalta a melancolia e a opressão social vivida pelos personagens.

Atualmente, “A Falecida” está disponível no serviço de streaming MUBI.

A Hora e Vez de Augusto Matraga

Assim como A Falecida, o filme de Roberto Santos também é baseado em um clássico da literatura brasileira. A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, é um dos contos mais importantes da história do país, e o filme lhe faz justiça.

Varreu a premiação da Semana do Cinema Brasileiro com prêmios nas categorias de melhor filme, ator, diretor, argumento e diálogo. A direção que explora o silêncio e o ambiente, potencializadores dos temas poderosos trazidos por Rosa na história original — personagens marginalizados, desigualdade e redenção.

O filme acompanha a trajetória de Augusto Esteves, mais conhecido como Matraga (Leonardo Villar), um fazendeiro violento e autoritário que, traído por aliados e espancado até quase a morte, é dado como morto.

Salvo por um casal humilde do sertão, Matraga passa por uma transformação moral e espiritual, buscando redenção através da fé e da caridade. Mas quando é posto à prova, precisa decidir se abandona de vez a violência ou se recorre a ela para fazer justiça.

A Hora e a vez de Augusto Matraga está no YouTube

São Paulo Sociedade Anônima

Considerado um marco do cinema brasileiro, São Paulo Sociedade Anônima, dirigido por Luiz Sergio Person, trouxe uma linguagem cinematográfica inovadora — câmera na mão, cortes secos, montagem subjetiva e narração em off.

Mergulha na alienação da classe média paulistana para retratar uma São Paulo fria, burocrática e opressora. Nela, acompanhamos Carlos (Walmor Chagas), uma espécie de anti-herói moderno — apático, introspectivo e dividido entre o tédio da rotina e a sensação de impotência diante do mundo.

A história se passa durante a euforia desenvolvimentista provocada pela chegada das indústrias automobilísticas multinacionais ao Brasil, no final dos anos 1950. Carlos, jovem de classe média, aceita um cargo de gerência em uma fábrica de autopeças, cujo dono é sonegador de impostos e mantém várias amantes.

Com o tempo, Carlos se torna um chefe de família que trabalha muito, ganha bem, mas vive profundamente insatisfeito. Sem projeto de vida ou perspectivas reais de mudança, vê na fuga a única saída possível para a vida que passou a rejeitar.

São Paulo Sociedade Anônima está disponível na Netflix.

Menino de Engenho

Baseado no livro de José Lins do Rego, o filme é dirigido e roteirizado por Walter Lima Júnior, que posteriormente ganharia um Urso de Prata no Festival de Berlim pelo filme Brasil Ano 2000.

Menino de Engenho acompanha Carlinhos, um menino órfão que, após a morte da mãe, vai morar com o avô em um engenho de cana-de-açúcar no interior da Paraíba. Ali, ele tem o primeiro contato com o mundo rural patriarcal do Nordeste, marcado por desigualdades sociais, autoritarismo, sensualidade e violência.

O engenho, ao mesmo tempo, fascina e revela os limites morais e afetivos de uma sociedade arcaica.
O filme é um exemplo bem-acabado da fase inicial da estratégia cinemanovista, com forte influência literária, mas já buscando uma linguagem autoral e crítica. Lima Jr valoriza o conteúdo político, mesmo que em tom subjetivo, e dialoga com a ideia de um cinema brasileiro conectado à realidade nacional.

Menino de Engenho está disponível no Youtube.

Vereda da Salvação

Três anos antes do lançamento de Vereda da Salvação, Anselmo Duarte foi premiado com uma Palma de Ouro por O Pagador de Promessas. Mas devido ao advento da ditadura militar, não pôde concorrer novamente, perseguido e impedido de voltar à Cannes.

Vereda da Salvação é um drama rural que mistura misticismo, fanatismo religioso e crítica social. Baseado na peça homônima de Jorge Andrade, o filme retrata o sofrimento dos camponeses brasileiros diante da miséria, da exploração e da ausência do Estado — motivos que levaram à perseguição.

A história se passa numa região isolada, cujo cotidiano não vai além do pauperismo e desesperança são. Nesse contexto, surge Judas, um messiânico líder camponês que começa a pregar salvação espiritual e arrebanhar fiéis. As pregações logo escalam para fanatismo religioso, em rituais de purificação e violência.

Apesar da exibição impedida em Cannes, o filme participou da Mostra Competitiva do Festival de Berlim (1965), ajudando a consolidar a carreira internacional de Duarte. O diretor ainda foi premiado na Semana do Cinema Brasileiro com o prêmio de melhor fotografia.

Vereda da Salvação está disponível no catálogo do MUBI.

O Desafio


O Desafio, dirigido por Paulo César Saraceni, é talvez o filme mais significativo da segunda fase do Cinema Novo, marcado pela abordagem urbana, política e existencial. Lançado logo após o golpe militar, é uma resposta direta à nova realidade autoritária do país — e propõe, como o título sugere, um desafio à apatia da classe média e à impotência das esquerdas diante da repressão.

A trama gira em torno de Marcelo, um jornalista engajado politicamente, que vive um dilema ético e existencial após o golpe militar. Ele se envolve com Adriana, uma mulher da alta sociedade, e essa relação acentua seu sentimento de deslocamento entre o mundo burguês, confortável e alienado, e sua consciência política.
Paulo César Saraceni arriscou fazer cinema, e seu filme se tornou mais que um filme — virou guerrilha.

O Desafio está disponível no Youtube.

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