“Quando Ford está em sua melhor forma, têm-se a impressão de que o filme viveu e respirou no mundo real”
Orson Welles sobre John Ford
Por Thiago Busse, especial para o Fringe
O asfalto fica pra trás e entramos numa estreita estrada de terra. Os galhos das árvores invadem a via para arranhar a lataria da van na qual seguimos o comboio liderado por uma daquelas caminhonetes musculosas que aparecem em propagandas como símbolo da força do agronegócio.
Na paisagem, os condomínios de luxo com nomes afrancesados dão lugar às pequenas plantações, matilhas de vira-latas estradeiros e coloridas bandeiras agitadas dos varais das casas de chácara. O devaneio bucólico, contudo, é interrompido pela visão do acampamento de tendas que ocupa o território.
Na vila improvável, há caminhões, carros, barracas, parafernálias eletrônicas, estruturas metálicas, quilômetros de cabos e – marcador mais importante – pessoas frenéticas se comunicando por rádios, nervosamente atarefadas.
Esse é o barro de onde se extrai o cinema.
Significa que estamos, enfim, na base das filmagens de Nova Éden, novo longa-metragem de Aly Muritiba e, certamente, a maior produção cinematográfica já realizada no Paraná.
Uma coprodução Brasil-Polônia, o filme é realizado pela Muritiba Filmes e Grafo Audiovisual em parceria com a Paramount Pictures e Mañana Films e produção associada e distribuição da Olhar Filmes.
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Aquela manhã de agosto era a diária nº 15 no calendário de 36 dias de filmagem. A produção estava locada em São José dos Pinhais, cidade vizinha a Curitiba e onde fica o Aeroporto Internacional Afonso Pena.
Mas há no roteiro previsão de locações em outra cidade da região metropolitana, Pinhais, em Morretes, no litoral e na cidade de Castro, na região dos Campos Gerais.
Na definição do diretor, Nova Éden é um “misto de horror psicológico e drama histórico”. O roteiro a seis mãos é assinado por ele, ao lado de Henrique dos Santos e Alice Marcone e levou seis anos até chegar ao tratamento final.
Na trama, o ator Welket Bungué, nascido em Guiné-Bissau, faz o papel de Damião, um padre negro que chega a uma vila de colonos na década de 1920. Mal-recebido pela comunidade, ele logo percebe que há forças estranhas enraizadas naquela comunidade.
No elenco, além do protagonista, estão Zahy Tentehar, Camila Morgado, Otavio Linhares, Ismael Caneppele, Gabriela Pousa, Henrique Veiga, entre outros. Até onde sabemos, o roteiro é uma investigação do passado do país que levanta questões urgentes sobre imigração, preconceito e as origens do conservadorismo no sul do Brasil.
As filmagens devem se encerrar neste mês de setembro e vou usar minha privilegiada posição – era talvez a única pessoa circulando pelo set sem nenhuma função – para mostrar como é a dinâmica de uma produção deste tamanho e por que ela é especial em vários pontos e como isso importa muito no tempo em que este filme está nascendo.
Caos organizado
Para quem nunca conviveu num set de cinema talvez não consiga perceber que, sob um aparente caos, se esconde uma meticulosa organização.
No centro da vila, fica uma grande tenda e no centro dela há um bufê com café, frios e salgadinhos. Nas mesas e no gramado em volta dela, operários descansam em seus esperados momentos de calmaria.
Fazer cinema é saber esperar sua vez e estar pronto para ir além de qualquer limite quando for a hora de atuar. Vale para todas as funções numa produção.
À esquerda, numa cabana de madeira, está o coração de toda operação. Ali estão montadas várias mesas com computadores, impressoras e papéis sem conta onde ficam as produtoras, assistentes de direção e parte da equipe executiva, de onde saem a famosa e aguardada “ordem do dia”.
Sim, há algo de militar no vocabulário e na rotina de uma produção de cinema.
A ordem do dia é o documento oficial que descreve o cronograma de filmagem com todas as informações relevantes, desde atores, objetos em cena, locações, horários, enfim, um documento crucial para todos os departamentos da equipe em cada dia da longa produção.
Faço um exercício de visão panorâmica para distinguir no set os vários departamentos e suas respectivas funções; o que cada um dos nomes que sobem nos créditos ao final da exibição está fazendo a cada momento.
Logo de cara, reconheço o Departamento de Direção, Continuidade, Produção, Platôs, Câmera e Fotografia, Maquinária, Elétrica, Arte, Figurino, Maquiagem, Som e ainda o que cuida dos muitos animais em cena.
Mais ao longe pode-se ver o contingente de carpinteiros, motoristas, cozinheiros e toda uma outra variada camada de trabalhadores da chamada “economia criativa”.
No meio disso tudo, coordenando toda essa estrutura, a diretora de produção Juliana Caimi. Ela me recebe simpática e lúcida (como ela a mantém em meio ao tiroteio de responsabilidades e imprevistos nunca consegui entender), porém com as indisfarçáveis inevitáveis olheiras nesse tipo de empreitada.
O cinema é mergulho em águas profundas – como a maioria das artes – só se entrega para quem se entrega totalmente.
Ao seu lado, absorta em seus afazeres, Ana Catarina Lugarini, uma das assistentes de direção (e também talentosa diretora), que, ao me notar, lança aquele olhar que me faz compreender que é melhor não a incomodar.
O trabalho para fazer a engrenagem fluir exige a paleta inteira das emoções e sentimentos humanos, o que me fez lembrar de uma entrevista recente de Guillermo Del Toro sobre seu novo filme Frankenstein.
O cineasta mexicano afirma que não vai abrir mão das pessoas, que faz questão de trabalhar com carpinteiros, eletricistas, assistentes, numa referência aos avanços da IA no mercado de trabalho.
Baiano radicado em Curitiba, Aly Muritiba pensa igual e me contou que tem precisado fincar o pé e se manter firme para defender as pessoas com quem trabalha dos executivos que querem cortes nas produções que dirige. “Trabalho com pessoas, com seres humanos. Se quiserem botar IA, podem achar outro diretor.”
Todos a Bordo
Sou arrancado dessas divagações por um grito saindo de uma van, anunciando a partida para o set de filmagem. “Última chamada! Todos a bordo!”.
Eu embarco, meio clandestino, tentando acompanhar o ritmo da remada sem atrapalhar. A van avança por estradas cheias de buracos e sobe e desce colinas para bem longe do acampamento até um cenário que vocês irão conhecer numa sala de cinema no ano que vem, através do olhar do diretor de fotografia polonês, Tomasz Naumiuk.
A locação é esplendorosa, uma fazenda com uma vista deslumbrante da represa do Iraí. Ali a produção construiu toda uma vila antiga, com suas casas, uma igreja, um armazém à moda antiga. Lembra um cenário de um dos filmes do russo Andrei Tarkóvsky (1932-1986)
A energia muda. É hora de fazer a mágica.
O frenesi do começo da filmagem me faz pensar em como fazer cinema é conciliar o aspecto pragmático, comercial e técnico do processo à costura espiritual, artística e romântica da criação de um filme.
Em Nova Éden, as duas forças estão manifestas o tempo todo: um dos sets de filmagem mais “profissas” em que já pisei, mas também o mais cheio de borogodó.
A conexão metafísica se vê no entrosamento de pessoas de origens, histórias e corpos tão diferentes em um tipo de sincronia em que só se chega quando há a consciência de que se está dando uma contribuição para algo grande, a tapeçaria complexa da construção de uma obra de arte coletiva.
Cabe ao diretor tensionar esta linha tênue, puxar os fios invisíveis do cuidado profissional pelo negócio com o instinto criador cuja matéria-prima é a emoção. Aly usa sua experiência para ser o maestro desta orquestra, pois é o único que tem a partitura toda na cabeça.
O tempo muda e o espectro de Tarkóvski – que tem pairado sobre essa produção – reaparece: “O tempo só pode ser impresso nos planos, se o cineasta souber montar o filme captando o tempo verdadeiro, o tempo humano, o tempo dos afetos.”
As coisas começam a fazer sentido, e nada ali está por acaso. Da cadeira improvisada, atrás do vídeo assist, cercado por vinte pessoas em silêncio, observo na telinha minúscula o que se passava dentro de uma cabana completamente coberta por panos pretos.
De repente, uma ventania ameaça fazer voar a barraca em que estávamos abrigados, mas surge um esquadrão de salvamento com cintos de utilidade, cheios de martelos, pregos, grampos e, em questão de minutos, o reforço nas estruturas está feito.
“É nesse ritmo que se fazem as ferrovias e hospitais chineses”, eu penso.
A calma volta a reinar, e observo que para resolver o caso não foi preciso nenhuma ordem de comando. O diretor, na maioria das vezes, nem chega a saber dos problemas comezinhos envolvendo a produção, que tem como missão blindá-lo de tudo que possa atrapalhar o processo criativo do filme.
Arte coletiva
Um filme começa muito antes de sua filmagem. Quanto melhor a pré-produção é feita, mais a equipe estará preparada e conseguirá se virar ante as imprevisibilidades que estão na conta da realização de um filme como esse.
Como disse o mestre maior Jean Renoir:
“Quando se realiza um filme, as relações entre os colaboradores – eu deveria dizer ‘cúmplices’ – tornam-se estranhamente íntimas. Essa fusão aparentemente vulgar talvez seja a causa de uma certa ‘grandeza genuína’ do nosso ofício […] Afinal, como se pode aprender a conhecer a vida senão através de outros seres humanos?”
Sabedoria absoluta, ainda mais no cinema, que é a mais coletiva das artes. Uma das grandes qualidades de um diretor e de sua equipe é a escolha do elenco. E dessa vez, o pessoal se superou ao convocar pessoas iluminadas.
Na hora da ação, fico hipnotizado tentando entender a técnica dos atores de fazer o difícil parecer simples.
O diretor de Solaris e Nostalgia baixa para falar comigo outra vez: “No cinema, o diretor tem de instilar vida no ator, não o transformar num porta-voz de suas próprias ideias.”
Algo que pode ser feito de muitas formas, mas penso que é melhor quando feito com sensibilidade, sem alarde. Os caminhos da direção de atores são o assunto mais estudado do cinema. Há muitos tratados escritos e o tema é vivo e inesgotável.
Eu fico com os ensinamentos do maior diretor que já existiu, John Ford, no estudo do crítico Tag Gallagher, do qual imagino que Aly também seja discípulo: “Ford conseguia fazer com que os atores realizassem exatamente aquilo que ele desejava, mas a partir das concepções dos próprios atores.”
Além do texto, dos atores, da técnica de captação de som e da imagem, da fotografia e tudo que envolve um filme, é o ambiente que decide para onde a coisa vai, tem um peso muito grande no resultado.
Coragem, sem perder a ternura
Aly é um cineasta cuja obra está em construção, muito prolífico, que se arrisca em projetos com temas muito diferentes entre si.
O conheço há anos, e vejo ele chegando num patamar de técnica e experiência suficientes para fazer com que seus filmes não sejam parecidos entre si, mas que “cada um tenha sua própria gramática”, como definiu o grande cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-1963).
Vendo-o trabalhar, lembrei do comentário de Clarice Lispector para um jovem em início de carreira, José Castello, após ler um conto seu: “Você é muito medroso. E com medo ninguém consegue escrever”.
Essa coragem para negar o caminho mais fácil e se desafiar constantemente não lhe falta e Nova Éden é um grande passo e provação.
Correr riscos sem perder a humanidade e a consciência artística e política do que se está fazendo. Acho que este é o desafio do cinema da minha geração.
Confesso que tenho traumas de experiências antigas com diretores de outra geração (homens, brancos, velhos, por coincidência…) em sets tóxicos e abusivos, pessoas gritando com as outras, pessoas sendo humilhadas.
Como alertou, há tempos, o grande John Cassavetes:
“Não entendo como as pessoas podem fazer filmes sobre pessoas e não ter absolutamente nenhuma consideração pelas pessoas com quem estão trabalhando.”
É bom saber que isso está ficando anacrônico, aos poucos, claro, mas como é um set de filmagem é lidar com sensibilidades, com empatia, com diálogos entre seres humanos diferentes sem perder a necessária tensão criativa que se cria nos encontros.
Esta é para mim a essência de uma obra de arte.
E foi isso que eu vi acontecer no set de Nova Éden.
Thiago Busse é músico e cineasta.