Bam. Bam. Bam. Batidas na porta da frente.
Você está presa.
Por um assassinato que ainda não cometeu.
Eis um resumo (im) possível do partido da montagem de Elizaveta Bam, a peça que a Cia À Curitibana Portátil levou em temporada recém-encerrada, no último domingo (14), em Curitiba.
Um ciclo de apresentações memorável, sempre com a casa do Espaço Excêntrico cheia, mas menos falado do que deveria.
Neste ponto, a encenação de Márcio Mattana tem um ponto de contato com o texto da peça, um tesouro da vanguarda teatral russa da primeira metade do século 20.
Criado pelo escritor e filósofo Daniil Kharms (1905-1942), que hoje não tem no teatro ocidental – e, ao que parece, mesmo no de sua Rússia natal – o apanágio que merece.
Traduzido por Margit Leisner, o texto antecipou estratégias e atmosfera das histórias de Franz Kafka.
Ou mesmo as que seriam levadas às últimas consequências pelos surrealistas ou autores do chamado teatro do absurdo, como Arthur Adamov, Samuel Beckett, Fernando Arrabal e Eugène Ionesco, entre outros.
Perversão da lógica, ruptura da linearidade temporal, pantomima afrontosa, sempre pulando de um lado para outro no limite riscado no chão entre o horror e o humor.
A direção de Mattana usa o espaço de forma magistral.
E uma espécie de “time dos sonhos do teatro local” – Fernando Marés, Beto Bruel e Victor Sabbag cria figurinos, cenários e iluminação para a ação passada na Rússia dos anos 1920.
Com direito a uma dose de vodca na temperatura ideal para a garganta do público.
As “janelas musicais” da casa e os ataques de fora para dentro da caixa cênica deixam a atmosfera eletrizante.
A partitura musical criada por Gilson Fukushima – com algumas adições de canções populares – guia a caminhada pelos muitos corredores do espetáculo, o que, de outra forma, seria pesado e sufocante.
O texto desperta paixão – há até certo exagero no risco de alguns jogos cênicos – nos atores de um elenco brilhante com Stella Maris e Rodrigo Ferrarini como protagonistas.
Destaque para a luta fantástica entre Mauro Zanatta e Adriano Petterman – se tivesse essa cena gravada eu veria uma vez por dia – e a performance de Chiris Gomes sangrando como quem canta.
Primoroso exemplo de uso coordenado de espaço com cenografia, interpretação, atores e música.
Paradoxalmente, a orquestração escorreita serve de cavalo para um texto perturbador que é, ao só tempo, alerta, alarme e profecia.
Para mim, o teatro não fica muito melhor que isso.