Poucos artistas representaram de maneira tão fiel o espírito de uma geração quanto Lô Borges. Cantor, compositor, guitarrista e poeta intuitivo das harmonias, ele fez da juventude mineira dos anos 1970 um estado permanente de invenção.
Lô Borges morreu neste domingo (2) aos 73 anos, deixando uma das obras mais originais da canção brasileira.A informação foi confirmada nesta segunda-feira (3), pela família do artista. Lô Borges estava internado na Unidade Terapia Intensiva (UTI) em um hospital de Belo Horizonte desde 17 de outubro.
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Lô nasceu em Belo Horizonte, em 1952, numa família numerosa e musical. Ainda adolescente, formou bandas com os irmãos e amigos — entre eles Beto Guedes — e experimentou os sons que dariam corpo ao movimento mais revolucionário da MPB fora do eixo Rio-São Paulo. O “menino da esquina”, como ficou conhecido, ajudou a fundar o Clube da Esquina, ao lado de Milton Nascimento, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Toninho Horta e outros nomes que definiram um novo paradigma estético.
Um disco que mudou tudo
Em 1972, aos 20 anos, Lô assinou com Milton o álbum “Clube da Esquina”, uma epopeia sonora de 21 faixas que cruzou Beatles, jazz, regionalismo e misticismo mineiro. O disco foi um divisor de águas na música popular, e Lô era o autor de boa parte das canções que se tornaram clássicos — entre elas “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Tudo que você podia ser” e “Paisagem da janela”.
Naquele mesmo ano, lançou seu primeiro disco solo, o lendário “Lô Borges”, apelidado de “disco do tênis” pela capa emblemática. Gravado com Beto Guedes e Flávio Venturini, o álbum revelou um compositor de melodias solares e harmonias inusitadas. Décadas depois, seria reverenciado por músicos do mundo inteiro, de Pat Metheny a bandas do indie britânico.
Da Via Láctea à eternidade
Nos anos seguintes, consolidou-se como um dos grandes letristas e melodistas do país. Fez parcerias com os irmãos Márcio e Telo Borges, com Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Nelson Angelo e tantos outros. Sua canção “O trem azul”, imortalizada na voz de Elis Regina, tornou-se um símbolo da viagem interior proposta por sua música.
Nos anos 1980, seguiu gravando discos que mantinham acesa a chama da poesia mineira: Via Láctea, Nuvem Cigana, Sonho Real e Sololô. Em 1996, lançou Meu Filme, com participações de Caetano Veloso e Milton Nascimento. Sua obra, sempre marcada pela delicadeza e pela busca do transcendente, recusava o imediatismo e o ruído — era música feita para durar.
O renascimento do Clube
No novo milênio, Lô voltou a reunir os amigos da esquina para celebrar as memórias e reavivar os sonhos. Lançou Feira Moderna (2001) e seguiu em shows pelo Brasil e pelo exterior, sempre fiel à sonoridade artesanal de voz e violão.
Em 2018, revisitou seu repertório no espetáculo “Tênis + Clube ao Vivo”, gravado no Circo Voador. O registro, lançado em DVD, reafirmou seu vigor e seu papel central no cancioneiro nacional.
Em 2019, veio o álbum Rio da Lua, parceria com Nelson Angelo, e nos anos seguintes uma sequência impressionante de criações: Dínamo (2020), com Makely Ka; Muito Além do Fim (2021), com Márcio Borges; e Chama Viva (2022), em colaboração com Patrícia Maês, Milton Nascimento, Paulinho Moska e Beto Guedes.
Sempre em movimento
Mesmo após seis décadas de carreira, Lô Borges continuava compondo como quem respira. Em 2024 lançou Tobogã, álbum de inéditas com Manuela Costa, celebrando a leveza e o frescor de suas melodias. No ano seguinte, percorreu o estado do Rio de Janeiro pelo Projeto Sesc Pulsar, levando o som do Clube da Esquina a novas gerações.
Lô foi mais que um músico. Foi o guardião de uma ética artística baseada na amizade, na partilha e na fé na canção como instrumento de comunhão. Como escreveu o irmão Márcio em Os Sonhos Não Envelhecem, “a música de Lô é o retrato da alma mineira que não teme o abismo — apenas aprende a voar sobre ele”.
