A vida é mais ou menos como o jazz. Fica melhor quando você improvisa” é a frase mais famosa do compositor George Gershwin (1898-1937). Sempre trabalhando ao lado do irmão Ira (1896-1983), ele foi o grande nome da chamada “era do jazz”: escreveu alguns dos temas e peças mais importantes da história, como virtuoso do piano, regente e compositor de obras célebres como Rhapsody in Blue e An American in Paris.

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Mas sua obra-prima, a hoje clássica ópera negra Porgy and Bess, não teve nada de improviso. Foi cuidadosamente escrita palavra por palavra, nota por nota, tema por tema pelos irmãos Gershwin, numa história que vale a pena ser contada.

Porgy and Bess no Municipal

Este clássico do repertório lírico do século XX ganha agora uma montagem inédita no Theatro Municipal de São Paulo, com um elenco formado majoritariamente por artistas negros. A direção musical é do maestro Roberto Minczuk e a direção cênica é assinada por Grace Passô.

Nas mãos de Grace e Roberto, a produção traz à cena o universo multifacetado desta ópera, que mistura o jazz à música tradicional das comunidades negras oriundas da diáspora africana no sul dos Estados Unidos. A esse material somam-se elementos do teatro e da música clássica da época, resultando numa narrativa sobre luta por direitos e amor.

A diretora Grace Passô. Foto; divulgação

“Quando pensamos em realizar uma montagem inédita de Porgy and Bess, o nome da Grace Passô surgiu imediatamente como a pessoa ideal para propor a concepção e assinar a direção cênica. Como dramaturga, diretora cênica, diretora de cinema e atriz, Grace soma atributos e se esmera pela contundência. Sua primeira abordagem da obra foi no sentido de criar paralelos entre o contexto estadunidense da época e o nosso contexto atual no Brasil”, explica Andrea Caruso Saturnino, superintendente geral do Complexo Theatro Municipal de São Paulo.

A história da ópera

A direção cênica de Grace Passô conduz a montagem inédita da ópera de Gershwin no Municipal. Foto: Rafael Salvador

Gershwin decidiu criar Porgy and Bess após ler o romance Porgy, da escritora DuBose Heyward (1885-1940). Fascinado pela história que retratava a vida da comunidade negra em Charleston, na Carolina do Sul, ele transformou a narrativa em ópera, com libreto de Heyward e letras em colaboração com Ira Gershwin.

No verão de 1934, o compositor mudou-se para Folly Island, na região de Charleston, para absorver a música e os costumes dos negros locais. Em ilhas próximas, assistiu a cerimônias dos Gullahs e chegou a participar dos tradicionais shouting. Em Charleston, encantou-se com os pregões dos vendedores de rua — alguns deles acabaram incorporados à partitura, que assumiu uma linguagem popular sem abrir mão da sofisticação peculiar de sua música.

O método Gershwin

Para o compositor, Porgy and Bess é uma “fábula popular”. “Quando comecei a trabalhar na música, decidi não usar material folclórico original porque queria que a música fosse uma coisa só, coesa. Por isso escrevi meus próprios espirituais e canções populares. Mas ainda assim são músicas folclóricas — e, portanto, estando em forma operística, Porgy and Bess torna-se uma ópera”, explicou em entrevista.

Na composição da peça inteira, ainda que em movimento dentro da ópera, os elementos da música negra são predominantes. Em vida, Gershwin sempre destacou que a música negra é o protótipo do jazz. “Todo o jazz moderno é construído a partir dos ritmos, giros e inflexões melódicas que vieram diretamente da África.”

Depois de concluir a composição, Gershwin passou cerca de nove meses orquestrando a ópera. Em setembro de 1935, a obra estreou em Boston, seguiu para Nova York, onde ficou em cartaz por 16 semanas, e depois saiu em turnê por três meses. A peça tem sido montada desde então no mundo todo.

Ópera negra

Mas quando surgiu, houve vozes discordantes que afirmaram que Porgy and Bess seria um super-musical em vez de uma ópera. Mas o consenso esmagador — ainda hoje — é que, independentemente da nomenclatura, trata-se de uma obra-prima, um clássico americano. Como disse Orrin Howard, diretor histórico da Filarmônica de Los Angeles:

“O sucesso de Gershwin com Porgy deveu-se ao seu senso de integridade artística. A obra possui grandes números musicais, mas, em estilo e conteúdo, não tem pretensões de se enquadrar no status de ópera grandiosa. É gloriosamente melodiosa e sem pudor melodramática; conta com pelo menos cinco papéis importantes; a orquestra é grande e rica, participando de forma fundamental, assim como o coro. Pensando bem, quão mais próxima de uma ópera grandiosa essa obra poderia ser?”

A trama e seus personagens

Os protagonistas Luiz-Ottavio Faria (Porgy) e Latonia Moore (Bess) em momento de intensidade dramática. Foto: Rafael Salvador

A história se passa em Catfish Row, comunidade pobre de Charleston, e acompanha as dores e paixões de seus moradores. Entre eles estão Porgy, um homem humilde e com deficiência física, e Bess, em busca de redenção após uma vida marcada por provações.

Clássicos como Summertime — interpretado por Billie Holiday, Janis Joplin, Louis Armstrong e Ella Fitzgerald —, My Man’s Gone Now e *I Got Plenty o’ Nuttin’ dão voz e alma a esta narrativa que cruza fronteiras entre jazz, teatro e música clássica. Sua relevância permanece pela profundidade emocional e pela sensibilidade social.

Uma montagem brasileira

Porgy and Bess já esteve no Theatro Municipal em 1992, em uma montagem vinda da Ópera da Virgínia, que percorreu Argentina e Uruguai antes de chegar a São Paulo, com elenco de cerca de 20 cantores líricos, em sua maioria negros.

Na nova montagem, inteiramente feita no Brasil, Grace Passô aproxima a obra do contexto cultural e social brasileiro, trazendo elementos das periferias para a cena. Primeira dramaturga negra a receber o Prêmio Shell, Grace construiu trajetória com obras como Por Elise (grupo Espanca!), Vaga Carne, Herança (com Maurício Tizumba), Pretoperitaomar (sobre Itamar Assumpção) e O Fim e Uma Outra Coisa.

“O momento em que Gershwin criou essa ópera era muito importante para a música mundial, por conta do impacto do jazz e da forma como essa cultura lidava com as tensões raciais. Fazemos aqui o exercício de pensar o que está acontecendo no Brasil de hoje, através desta versão que imagina paralelos contemporâneos com a trama original escrita nos anos 1930”, explica Grace Passô.

Cenografia da quebrada

Cenografia de Marcelino Melo (Quebradinha) recria com poesia visual o universo popular de Porgy and Bess. Foto: Rafael Salvador

A concepção cenográfica é assinada por Marcelino Melo, o Quebradinha, artista plástico e cenógrafo conhecido por suas miniaturas de favelas, que recriam becos e casas com precisão poética, transformando memória e vivência em arte.

O espetáculo terá também o Coro Porgy and Bess, formado por cantores do Coro Lírico Municipal, integrantes do Coral Paulistano e artistas convidados, sob regência de Maíra Ferreira. A fusão das vozes dará à montagem a força vocal que consagrou a ópera como marco do repertório internacional.

O elenco conta com Luiz-Ottavio Faria como Porgy em todas as récitas. No papel de Bess, estão Latonia Moore (19, 21 e 27) e Marly Montoni (20, 23, 24 e 26). O elenco alterna nomes como Bongani Kubheka, Jean William, Betty Garcés, Davi Marcondes e Nubia Eunice.

Theatro Municipal de São Paulo – Sala de Espetáculos

Porgy and Bess, de George Gershwin, com libreto de DuBose Heyward

Quando: 19 a 27 de setembro
Ingressos: R$ 33 a R$ 210
Duração: 230 minutos, com intervalo
Classificação: não recomendado para menores de 14 anos

Ingressos de R$ 33 a R$ 210
Mais informações disponíveis no site.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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