Desde 2012, o dia 17 de outubro é o Dia da Música Popular Brasileira. A data escolhida é a do nascimento da compositora, pianista e maestrina carioca Chiquinha Gonzaga (1847–1935), um dos pilares da música popular e uma personagem revolucionária da cultura nacional.
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Neta de uma escravizada alforriada, Chiquinha Gonzaga abriu entradas e bandeiras no protagonismo cultural das mulheres, no sucesso como compositora e na defesa dos direitos autorais de músicos e autores teatrais.
Uma expressão associada a um movimento surgido na década de 1960, na música popular urbana de classe média, surgida após a segunda geração da Bossa Nova, no momento que a história registra como a Era dos Festivais.
Mas, a partir de sua criação, passou a designar tudo o que aconteceu antes e depois, numa bastante controversa linha evolutiva da música feita por artistas brasileiros.
Assim, MPB não é um gênero como o samba, o rock ou o trap.
E nela cabem, portanto, um choro de Pixinguinha, um samba de Noel Rosa, uma canção de Odair José, um rap dos Racionais, o rock do Barão Vermelho e um baião de Luiz Gonzaga.
O pop de Rita Lee, os afro-sambas de Benê e Vinicius, um funk de Anitta ou como diz meu amigo Sandoval Matheus, um “brega de Amado Batista tocando na jukebox de um puteiro em Serra Pelada”
Inadvertidamente, vamos arriscar traçar esta linha década a década num passeio pelos últimos cem anos deste monumento de beleza e caos que chamamos de Música Popular Brasileira.
Anos 1920 – Os tempos heroicos
Ao mesmo tempo, no Recôncavo Baiano, na Bahia, e na Pequena África, no Rio de Janeiro, artistas do povo criaram, a partir de ritmos afro-brasileiros como o lundu e o maxixe, influências indígenas e europeias. Samba nasce oficialmente em 1914, ganhou sua certidão de nascimento em 1916, quando o cantor Baiano gravou “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, o primeiro exemplar do mais brasileiro dos gêneros.
De uma certa maneira, começa a música contemporânea brasileira, ainda que já existisse muita coisa acontecendo. Junto com o samba nasce o choro na capital do país, pois, no outro lado da calçada, Pixinguinha grava seu primeiro trabalho em 1917 e logo ele iria, ao lado de outros, criar um jeito brasileiro de arranjar e orquestrar a música. O rádio e a indústria fonográfica engatinhavam, mas já começavam a formar o público que daria identidade à canção popular brasileira.
- Um livro para entender o período: Uma História do Samba – as origens, de Lira Neto
Anos 1930 – A era de ouro
Segundo o escritor João Máximo, a música popular brasileira vinha engatinhando desde o século 19, até que, entre os anos 1929 e 1939, cresceu e ficou adulta. Foi nesse período que se firmaram no país as rádios, as gravadoras e, como gênero essencial, o samba.
Foi quando surgiram as escolas, aliás. Uma geração de artistas brilhantes, negros como Cartola, Bide, Marçal, Paulo da Portela e Ismael Silva, criaram o cânone da música brasileira, e o genial Noel Rosa trouxe esta cultura do morro para o asfalto. Francisco Alves foi o grande astro deste tempo, os cassinos empregavam milhares de operários desta economia criativa e Ary Barroso e Carmen Miranda levaram a música brasileira para o exterior. Foi a chamada Era de Ouro.
- Um livro para entender o período: Noel Rosa, uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier
Anos 1940 – O baião encontra o samba-canção
Na década de 1940, dentro de um movimento da margem para o centro, Luiz Gonzaga desponta como o grande nome do cenário musical brasileiro, com canções que retratavam o Nordeste, como Asa Branca e Assum Preto, e atrás dele vêm artistas Jackson do Pandeiro e Alvarenga & Ranchinho, trazendo o som do Brasil profundo.
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mesmo tempo, há o advento do samba-canção, que tem a ver com a decisão política da proibição do jogo. Fora dos ambientes grandiloquentes dos cassinos, a musa precisou baixar o tom, em ritmo mais lento e arranjos mais apurados, para caber no espaço das boates. As canções falavam principalmente de amor. Foi o tempo de Dolores Duran, Antônio Maria, Dorival Caymmi e outros.
- Um livro para entender o período: A Noite do Meu Bem, de Ruy Castro.
1950 – A onda que se ergueu no mar
O baiano João Gilberto, em 1956, depois de passar perrengues na cidade maravilhosa, se trancou por oito meses na casa da irmã Dadainha, em Diamantina. No período, passou a maior parte do tempo de pijama tocando violão — muitas vezes no banheiro, para aproveitar a acústica — e cantando baixinho enquanto a sobrinha dormia, para não acordar as crianças da casa. Quando foi embora para o Rio, tinha encontrado a batida da bossa nova que ia se espalhar no mundo como uma primavera.
A bossa nova foi a evolução solar do samba-canção, com forte influência do jazz norte-americano e um estilo de interpretação sofisticado e suave, mas com temas otimistas, líricos — a hora do sim, depois de muitos nãos. Chega de Saudade.
Surgiu num tempo em que o Brasil estava irreconhecível: havia democracia, havia Pelé e havia Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Carlos Lyra e Nara Leão. A bossa nova não era sucesso de público — os boleros eram —, mas foi a música brasileira mais influente, disputando paradas de sucesso com os Beatles nos anos seguintes.
- Um livro para entender o período: Chega de Saudade, de Ruy Castro.
Anos 1960 – Na era dos festivais, surge a MPB
A MPB (Música Popular Brasileira) é o movimento que, na década de 60, após e em oposição ao golpe militar e a Ditadura Militar, surgiu em sucessão à Bossa Nova. Uma mistura de toda a música nacional feita até então, com um sentido orientado pelos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes.
Era a música dos universitários e intelectuais, que encontrou nos festivais de música realizados anualmente, de 1965 a 1969, e transmitidos pela televisão, o espaço que revelou e impulsionou artistas como Elis Regina, Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso e tantos outros.
Por outro lado, as massas de jovens consumiam a Jovem Guarda, de Roberto e Erasmo Carlos, a versão brasileira do rock, enquanto o bolero e a canção romântica faziam a cabeça do povão. Além disso, houve o estrondoso sucesso de Wilson Simonal e um resgate da primeira geração do samba. A MPB, contudo, foi o embrião político da explosão que aconteceria na década seguinte.
- Um livro para entender o período: A Era dos Festivais: Uma Parábola, de Zuza Homem de Mello.
1970 – O apogeu da melhor música do mundo
Acho que não exagera quem diz que a década de 1970 amalgamou, processou e consagrou tudo que o Brasil fez de melhor em matéria de música.
Do ponto de vista de mercado, a indústria fonográfica estava forte e pujante como nunca mais seria. Em tabelinha com a TV, a cultura do LP era central na vida das famílias brasileiras e, do ponto de vista criativo, falta espaço na internet para falar de tudo o que aconteceu.
Surgiu a verdadeira música pop brasileira, a partir do furacão Secos e Molhados, que abriu caminho para uma MPB bastante plural, onde cabiam artistas dos quatro cantos do país.
A black music brasileira de Tim Maia, Cassiano, Tony Tornado, Hyldon e da Banda Black Rio, entre outros, surgiu avassaladora. Os grandes nomes do estilo musical popular que é pejorativamente chamado de brega, como Fernando Mendes, Evaldo Braga, Odair José e Reginaldo Rossi, se afirmaram.
Rita Lee viveu duas fases — a de band leader de hard rock com o Tutti Frutti e a de estrela maior do pop com Roberto de Carvalho. Bethânia virou a abelha rainha, Gal foi fatal e Elis Regina virou a maioral.
Surgiu, nos subúrbios cariocas, a geração do Fundo de Quintal, embalada por Beth Carvalho, que revolucionaria o samba na década seguinte.
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Alguns dos maiores nomes da primeira geração do samba, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus, puderam enfim gravar seus discos.
Nomes da geração da MPB gravaram seus melhores trabalhos, como Gil, Caetano, Chico e Jorge Ben Jor.
Uma geração ligada à poesia marginal tropicalista, como Jards Macalé, Torquato Neto, Waly Salomão e Walter Franco, veio desafiar o coro dos contentes.
Fafá de Belém (do Pará), Alceu Valença, Geraldo Azevedo (de Pernambuco), Elba Ramalho, Zé Ramalho (ambos da Paraíba), Milton Nascimento e o Clube da Esquina (de Minas Gerais), Belchior e Fagner (ambos do Ceará), trouxeram novas visões e sotaques — e alguns dos melhores álbuns da história.
Compositores de prestígio saídos diretamente das escolas de samba do Rio de Janeiro, dentre os quais se destacam Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Dona Ivone Lara. Surgiu Raul Seixas, e Roberto e Erasmo lançaram suas obras-primas.
Sem falar da nossa versão da discoteca, das primeira bandas punk e de metal ,dos artistas de vanguarda eletrônicas… Como cantou Thaíde, anos depois – e apesar da política – “que tempo bom que não volta nunca mais.
Um livro para entender o período: Pavões Misteriosos – de André Barcinski
Anos 1980 – Pro dia nascer feliz
Dentro do contexto do país que caminhava para a redemocratização e a partir do verão de 1982, uma nova onda tomou o Brasil: vinda de Brasília, São Paulo, Rio Grande do Sul, mas principalmente do Rio de Janeiro.
O rock brasileiro. Um movimento liderado, no início, pela Blitz, na cena do Circo Voador, no Rio, mas que depois, por meio das rádios FM, tomou conta do Brasil.
O Rock in Rio, em 1985, foi o divisor de águas e, durante a década, bandas e artistas como Marina Lima, Kid Abelha, Ira, Paralamas, Barão Vermelho, Lobão e Legião Urbana fizeram a cabeça de uma juventude brasileira que começava a fazer parte do mercado consumidor.
Mas os anos 80 não foram só isso. Artistas surgidos na década anterior estavam no auge da popularidade, e o samba teve um período de renascimento na voz de artistas como Zeca Pagodinho, Agepê e Martinho da Vila. Surgiu Marisa Monte, herdeira da geração original da MPB, e nas periferias de São Paulo, a cultura do rap começava a se formar.
As bandas infantis, assim como as boy bands, como Balão Mágico e Dominó, faziam muito sucesso — bem como a rainha Xuxa. Surgiu também a ascensão das duplas sertanejas, como Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, e outras que, a partir daí, dominariam até hoje o cenário da MPB.
- Um livro para entender o período: Dias de Luta, de Ricardo Alexandre
Anos 1990 – Da lama aos caos
Passado o período da ditadura militar e com o fim do gás do rock brasileiro, chegamos à minha geração, aquela que André Forastieri chama de “new wave brasileira”. Uma profusão de bandas e artistas surgiu no início dos anos 1990 – já sob a influência da internet e da MTV – misturando a vanguarda europeia com a cultura nacional, como Planet Hemp, Júpiter Maçã e, claro, o Manguebeat de Recife, com Mundo Livre, Chico Science e Nação Zumbi, entre outros.
Um movimento que, entre outras coisas, foi a tentativa de universalizar elementos da cultura nacional, mostrando-os ao mundo na ânsia de acertar nosso passo com o cenário cultural mundial depois de meio século de atraso. Um Brasil cosmopolita que engolia e devolvia uma arte original e que foi além da música. Em Curitba, a efervescência das cena, fez com que a cidade fosse apontada como a “Seattle brasileira”, em comparação com a cidade americana onde explodiu o grunge.
Mas os anos 1990 também foram o auge do sertanejo romântico, da afirmação do pagode romântico que viveu sua era de ouro nos anos 1990 com grupos como Raça Negra e Só Pra Contrariar. O axé baiano dominou as paradas e os carnavais a partir de então com Daniela Mercury, Ivete Sangalo e muita gente boa. Foi a década da afirmação dos Racionais MC’s, do surgimento de uma geração fundamental do hip hop brasileiro e da ascensão do funk carioca, que seria dominante nos anos seguintes.
- Um livro para entender o período: Criança de Domingo, de José Teles
Anos 2000 – A era do artista operário
O início do século XXI é marcado por transições. A crise da indústria fonográfica e o avanço da internet abrem espaço para o mercado independente e para novas formas de produção. O estúdio doméstico e as plataformas digitais democratizam o fazer musical, transformando a gravação em ferramenta criativa e o artista em produtor de si mesmo. os tempos eles estavam mudando.
O funk carioca domina as paradas. O rock volta com força entre os jovens — CPM 22, Skank e Charlie Brown Jr. toda geração emo. Na MPB, surgiram novas vozes como Céu, Seo Jorge, Vanessa da Mata, Romulo Fróes e se consolidaram outras como Cássia Eller, Zélia Duncan e Maria Rita renovando a MPB. Surgiu também o “forro universitário” de grupos como o Falamansa.
- Um livro para entender o período: O Mundo Funk Carioca, de Hermano Vianna
Anos 2010 – Redefinindo o Mapa
A década de 2010 redefine o mapa da música brasileira. O streaming e o YouTube substituem o rádio e a TV, permitindo o surgimento de cenas locais e periféricas. O funk carioca e o rap paulista se consolidam como forças centrais, enquanto Liniker, Pabllo Vittar e Emicida dão voz à diversidade e à inclusão. è o momento de afirmação das vozes femininas do sertanejo como Marilia Mendonça e Mayara e Maraisa.
A velha MPB dialoga com o pop contemporâneo e a cena LGBTQIA+ ganha protagonismo. A produção se descentraliza e a música se torna espelho das transformações sociais e digitais do país. O funk carioca em suas muitas vertentes é a musica mais popular, mas surgem ritmos regionais como pisero, no nordeste – calypso, arrocha e tecnobrega no norte do pais.
- Um livro para entender o período: Tecnobrega, o Pará reinventando o negócio da música, de Ronaldo Lemos e Oona castro
Anos 2020 – Depois do vendaval
Em 1972, o premiê chinês Zhou Enlai foi perguntado sobre o impacto da Revolução Francesa no mundo e disse: “É muito cedo para dizer.” Considerando que a Revolução Francesa ocorreu em 1789, quase duzentos anos antes, a frase entrou no universo dos historiadores sugerindo precaução ao julgar acontecimentos recentes. O que é certo é que a nossa década em que estamos foi a pandemia de Covid-19, que veio para quebrar tudo.
Às vezes, parece que estamos ainda em processo de reconstrução cultural pós-pandemia, depois de alguns anos de retomada dos shows e de políticas públicas para o setor, que redefinem o público e os espaços. O consumo digital amadureceu, mas o ao vivo reafirmou o poder coletivo da música. Assim, com nomes como João Gomes, Matuê, Terno Rei, Letrux, Felipe Cato, Ana Frango Elétrico, Liniker e tantos outros, a cena musical brasileira reencontra sua vitalidade histórica — diversa, híbrida e comprometida com o país real.
- Para entender o período eu sugiro as aulas do compositor Romulo Fróes, da Rádio Batuta, no Instituto Moreira Salles: