Andando pelas ruas de São Paulo, dei a sorte de entrar na grande exposição do Itaú Cultural sobre Oswald de Andrade (1890-1954). Sou entusiasta de longa data do nosso contraditório Oswald (lê-se osváldi), o intelectual orgânico brasileiro quintessencial.

Quase sempre que seu nome é mencionado, porém, lemos um aposto chamando-o de “pai do modernismo”, um epíteto que não me parece de todo justo. Não que Oswald não tenha batido esse tambor mais forte que qualquer outro, mas pelo fato de sua obra em prosa, poesia, teatro e jornalismo influenciarem de forma perene a vida nacional.

Oswald de Andrade em casa. Foto: Acervo Marília Andrade

De qualquer maneira, a Ocupação é uma incrível e completa homenagem ao pensador e criador cuja proposta estética e filosófica é falada até hoje.

Como prova, a entrevista que o grande Renato Borghi deu à Folha de S. Paulo, há quatro dias, sobre a nova montagem oswaldiana do Teatro Promíscuo. Ou mesmo a interpretação proposta por Erika Palomino e equipe na nova edição de Babado Forte, que aponta para uma cena underground brasileira descentralizada e antropofágica.

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E, juntando algumas pontas soltas, me parece apropriado dizer que sua influência pessoal, estética e política foi fundamental para a criação dos três principais movimentos da música popular no Brasil da segunda metade do século XX.

A produção de Oswald ocorreu principalmente entre as décadas de 1910 e 1950, mas foi após sua morte, em 1954, que ele se tornaria fonte para manifestações artísticas importantes, como a Poesia Concreta e o Teatro Oficina, de claro e declarado teor oswaldiano.

José Celso Martinez Corrêa em cena do filme O Rei da Vela”. Foto: Reprodução

O Rei da Vela (1965), montagem do Teatro Oficina de uma dramaturgia oswaldiana, é um marco das artes cênicas brasileiras. Entre os materiais da exposição, aliás, está a projeção de O Rei da Vela (1982), filme que registrou o espetáculo e que está disponível na plataforma de streaming Itaú Cultural Play.

Contudo, há uma influência oswaldiana menos óbvia na formação das três maiores ondas da MPB no século 20, que começa pelo fascínio pessoal e estético que Oswald exerceu sobre Vinicius de Moraes.

Bossa Nova

Importante pensar que a bossa nova foi o movimento que transformou a forma como o Brasil passou a se ver e a ser visto pelo mundo. O pouco comentado encontro entre Oswald e Vinicius deu-se durante uma viagem do primeiro à Europa no trágico ano de 1939.

Oswald viajara para representar o Brasil em um congresso de escritores do Pen Club, em Estocolmo, com sua esposa Julieta Bárbara Guerrini. O casal aportou em Paris na véspera da invasão da Polônia pelas tropas de Hitler.

Isso está narrado no livro A Guerra Invisível de Oswald de Andrade, de Mariano Marovatto, que relata as peripécias de Oswald e esposa pela Europa depois que, em apenas um dia, a viagem oficial se transformou em uma aventura de fuga da guerra.

Foi nessa Paris que Oswald encontrou Vinicius, então estudante de literatura inglesa em Oxford e ainda um poeta bem conservador na forma e conteúdo, muito influenciado pelo escritor católico Octavio de Faria.

Vinicius estava em lua de mel em Paris com sua primeira esposa, Tati de Mello Moraes. Os dois casais, impedidos de retornar a Londres, precisaram se aventurar para chegar a Lisboa, como também queriam os personagens do filme Casablanca, de onde poderiam retornar ao Brasil.

Vinicius de Moraes em fase poetinha. Foto: Reprodução

A percepção de Marovatto — que adotei imediatamente após ler seu ótimo livro — é que o Vinicius que conhecemos hoje: o poetinha, o homem das grandes paixões, “o branco mais preto do Brasil na linha direta de Xangô” e o primeiro hippie brasileiro, foi profundamente influenciado por esse encontro.

Um Oswald maduro, já ex-aristocrata, comunista, cosmopolita, em seu sexto casamento e de personalidade explosiva, foi um espelho para Vinicius, que o descreveu como “um coração violento”.

Me parece que muito do “sim” que a Bossa Nova trouxe para a cultura nacional, suavizando o “não” da era do samba-canção, tem a ver com a transformação que ocorreu em Vinicius, que foi, aos poucos, abrasileirando e politizando seu trabalho.

Tropicalismo

Na geração seguinte, a influência de Oswald é mais nítida e profunda, especialmente sobre Caetano Veloso, mas também sobre o grupo de artistas, poetas e compositores que formaram o que chamaríamos de Tropicália.

Sob o risco da superficialidade, pode-se dizer que os tropicalistas materializaram, com elementos da pop art, muitas das ideias modernistas de Oswald.

Em seu livro de memórias ensaísticas, Verdade Tropical, Caetano conta que foi ao assistir a uma sessão de O Rei da Vela que resolveu fugir com o circo.

Depois, ele cita muitas vezes sua leitura do “Manifesto Antropofágico” e a metáfora da devoração, dizendo que nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim deglutir a informação nova, de onde quer que ela viesse.

Ou “nas palavras de Haroldo de Campos, assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos novos, com qualidades locais iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe conferiam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação”.

Assim, temos uma ideia do peso da presença oswaldiana na bossa nova e no tropicalismo, os dois movimentos culturais mais importantes do pós-guerra no Brasil.

Manguebeat

Passado o período da ditadura militar, chegamos à minha geração, aquela que o grande André Forastieri chama de “new wave brasileira”, ainda que tardia.

Aquela profusão de bandas e artistas surgidos no início dos anos 1990 que misturava a vanguarda europeia com a cultura nacional, como o Planet Hemp, as bandas do rock gaúcho, e, claro, o Manguebeat, de Recife.

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Um movimento que, entre outras coisas, foi a tentativa de universalizar elementos da cultura nacional mostrando-os ao mundo na ânsia de acertar nosso passo com o cenário cultural mundial depois de meio século de atraso. Um Brasil cosmopolita que engolia e devolvia uma arte original e que foi além da música.

O Manguebeat tinha toda uma expressão visual própria que misturava o que acontecia em Nova Iorque com o sertão de Pernambuco. O nome Manguebeat não é outra coisa senão a mistura do nosso ecossistema litorâneo lamacento com a batida, além dos bits dos computadores que já faziam arte.

Num movimento bem oswaldiano, todo o ideário do Manguebeat foi resumido num manifesto intitulado “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro.

Assim, dá para dizer que Vinicius, os tropicalistas e o pessoal do Manguebeat usaram as bases morais e estéticas que Oswald de Andrade criou para pensar o país a partir da ideia de que devemos não nos deixar colonizar culturalmente, mas sim reinventar e devolver nossa visão cultural ao planeta.

Tenho a impressão de que Oswald — que morreu pobre, incompreendido e quase esquecido — teria adorado ver tudo isso acontecendo.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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