Entre as qualidades de um grande compositor, a mais alta é a originalidade.

Metade de um acorde — sempre mais percussivo que harmônico — do violão de Nelson Cavaquinho serve para abrir a porta do mundo inimitável deste criador de vida boêmia e aura lendária, cuja alegria pessoal contrastava a com a temática de amor, sofrimento e morte de seus sambas mais conhecidos.

Filho de um tubista da banda da Polícia Militar do Rio e de uma lavadeira do Convento Santa Teresa, Nelson Antônio da Silva nasceu num dia 29 de outubro, como hoje, no ano de 1911, o mesmo em que nasceram outros heróis nacionais, Maria Bonita e Marighella. Em sua casa, na Tijuca, se organizavam rodas de samba.

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Sua vida e, portanto, sua arte foi marcada por deslocamentos e encontros. Pois, no Rio da República e da Abolição recém promulgada, o território importava muito.

Por volta de 1919, a família mudou-se para a Lapa, onde Nelson aprendeu a ser eletricista. No velho bairro boêmio, frequentou a Escola Primária Evaristo da Veiga, abandonando o curso para trabalhar como eletricista. Na Lapa, fez amizade com os então chamados “valentes”: Brancura, Mano Edgar e Camisa Preta.

Mais tarde, adolescente, foi morar com a família no subúrbio de Ricardo de Albuquerque e depois numa vila operária do bairro da Gávea, onde frequentava os bailes dos clubes Gravatá, Carioca Musical e Chuveiro de Ouro. Lá conheceu os músicos decisivos em sua formação, como Edgar Flauta da Gávea, Heitor dos Prazeres, Mazinho do Bandolim e o violonista Juquinha.

Com este, desenvolveu seu peculiar jeito de tocar cavaquinho e violão. Virou figura fácil nas rodas de choro e samba que espocavam pelo Rio de então. Em 1931, casou-se, obrigado pelo sogro, com Alice e, também “motivado” por ele, ingressou na polícia montada carioca, fazendo um “gato” na certidão de nascimento, que foi alterada para que ele tivesse um ano a mais e já fosse “de maior”.

Segundo o mágico Dicionário Cravo Albin, Nelson Cavaquinho e seu cavalo, de nome “Vovô”, patrulhavam o Morro da Mangueira, local onde fez amizade com sambistas como Zé com Fome (Zé da Zilda) e Carlos Cachaça.

Ao conhecer Cartola, na quadra da Mangueira, e depois de ficar muito tempo conversando com este, o cavalo voltou sozinho para o batalhão, o que ocasionou, mais uma vez, a sua detenção. Ficar detido era comum naquela época, já que passava dias sem ir ao quartel, em decorrência da boemia. Sobre este fato, narrou:

“Eu ia tantas vezes em cana que já estava até me acostumado com o xadrez. Era tranquilo, ficava lá compondo. Entre as músicas que fiz no xadrez está Entre a Cruz e a Espada.”

No ano de 1938, antes de ser expulso da corporação, conseguiu dar baixa e dedicou-se à música em tempo integral.

Mudou-se para o Morro da Mangueira em 1952 e foi mais ou menos nessa época que conheceu Guilherme de Brito, no bairro de Ramos. Nascia ali a parceria que criaria alguns dos maiores temas da música universal.

Nelson teve músicas gravadas desde a década de 1930, mas foi só em meados dos anos 1960 que suas principais composições foram finalmente registradas com capricho por cantoras como Nara Leão, Elizeth Cardoso e Thelma Soares.

No ano de 1967, o depoimento dado a Sérgio Cabral, Eneida, Sargentelli e Elizeth Cardoso foi registrado em LP, disco no qual também interpretou com sua proverbial voz rouca, de sua autoria, 12 composições.

Em 1968, participou do LP Fala Mangueira, ao lado de Clementina de Jesus, Cartola e Carlos Cachaça. No ano seguinte, foi tema do curta-metragem Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman.

Entre 1970 e 1973, lançou três LPs próprios que consagraram sua obra no meio da melhor música popular brasileira.

Na vida pessoal, teve vários relacionamentos, até que, no início da década de 1960, conheceu Durvalina, trinta anos mais nova do que ele, com quem viveu até a sua morte, na madrugada de 18 de fevereiro de 1986, vitimado por um enfisema pulmonar.

Sua forma de levar a vida, sempre em altas doses de alegria boêmia, contrasta com seus sambas, que falam mais dos espinhos que das flores, e com um olhar permanentemente soturno, mórbido, sobre a existência finita da vida e do amor. Assim, de bar em bar, fez mais de 800 musicas em seis décadas.

Parece que não faz sentido, mas faz sim, pois, como me explicou seu xará, também mangueirense, Nelson Sargento, “o samba é triste para que a gente não seja”.

Nada que se escreva sobre Nelson Cavaquinho estará à altura do que disse o mestre maior José Ramos Tinhorão, para quem abrimos aspas antes de nos despedir, sem saber se voltaremos. Não nos leve a mal, que hoje é carnaval:

“Tome um homem, seu violão, cante pelas ruas, como um antigo trovador da Idade Média, a beleza das flores, a efemeridade da vida e a angústia metafísica da morte — e esse será o retrato de Nelson Cavaquinho. Com sua cabeleira branca, seu permanente ar de dignidade e a sua voz enrouquecida por muitos anos de cervejas geladas, o que Nelson Cavaquinho canta (fazendo percutir, mais que dedilhar, as cordas do seu violão) é a saga de um homem que vive em estado de poesia. E cuja obra, por isso mesmo, não morrerá.”

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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