Na passagem do século XIX para o XX, Manaus vivia os tempos áureos da extração da borracha. Endinheirada, a elite da cidade e as autoridades queriam estar alinhadas aos ideais de progresso, modernidade e civilidade. A colonização implicou que o modelo a ser seguido era a Europa. Em sua Belle Époque, a “Paris dos Trópicos” tinha luz elétrica, avenidas sobre pântanos e igarapés aterrados, bonde elétrico, prédios e espaços públicos projetados e construídos com materiais vindos de países europeus, como o Teatro Amazonas, o Mercado Adolpho Lisboa, o Porto de Manaus, o Prédio da Alfândega.
Nesse cenário de suposta prosperidade, a historiografia oficial registrou a prostituição na cidade a partir de lentes e filtros de luxo: “A história do glamour da prostituição na cidade era paralela à da Belle Époque, as ‘cocotes’, ‘polacas’, ‘francesinhas’ do Hotel Cassina (espaço de diversão das elites, um conjugado de dancing, bordel e cassino), das Casas e bares elegantes da Av. Eduardo Ribeiro (principal avenida da cidade), nos cabarés onde se bebiam conhaque, champanhe, vinhos finos, nos quais desfilavam corpos femininos alvos, com seus cabelos – preferencialmente – loiros ou ruivos (…)”, escreve o pesquisador Paulo Marreiro dos Santos Júnior.
Para além dessa imagem plasmada, racista e estereotipada de uma prostituição de luxo, arquivos como jornais da época, registros da polícia, e prontuários médicos dão a ver outra realidade. Na edição de 22 de fevereiro de 1914, o jornal O Chicote publicou a “tabela de variação da zona devassada”. Tratava-se de um roteiro da prostituição nas ruas de Manaus. Dependendo do local, o preço da prostituição aumentava ou diminuía. Por exemplo: na Estrada Epaminondas, 4$000; na Itamaracá, 3$500. De acordo com a lista, os locais de prostituição mais baratos eram o Beco do Comércio, 1$200 e o Fréges dos Remédios, 1$000.
Na plateia do Teatro Zé Maria, no dia 2 de abril, durante a apresentação da peça Cabaré Chinelo no 32º Festival de Curitiba, ouvi quando o casal sentado ao meu lado comentou que a Rua Itamaracá segue sendo um espaço de prostituição urbana em Manaus. A “tabela da zona devassada” foi um dos registros históricos que puderam ser acessados durante a peça pelos espectadores em seus próprios celulares, a partir de um QR Code impresso junto ao ingresso. O espetáculo é do Ateliê 23, coletivo sediado em Manaus, que completou 10 anos em 2023 e possui mais de 30 obras, entre criações de artes cênicas, música e audiovisual. Ao meu lado, o casal vibrou com as referências à cidade, o sotaque e a representatividade do espetáculo. Mais tarde, durante as Ações críticas, no debate entre o elenco e o público, mediado pela diretora da Cia Senhas, Sueli Araújo, eles contaram que tinham vindo de uma cidade próxima, especialmente para ver a peça.
Cabaré Chinelo é apresentado há um ano e meio em Manaus, capital do maior estado do Brasil, em sessões lotadas. Em 2023, o grupo participou do FIT Rio Preto, em São José do Rio Preto, da Extensão FIT Rio Preto, em São Paulo, e até agora, em 2024, se apresentou em São Paulo e no Festival de Curitiba. No Brasil, um país de dimensões continentais como todos sabemos, a distância e os valores implicados nisso são argumentos para que produções de artes cênicas não consigam circular, especialmente criações do Norte e do Nordeste. A justificativa é plausível, mas algumas questões precisam ser elaboradas. A primeira delas é: distante em relação a quê? Qual o referencial de distância? E por que são esses os referenciais? Quais apagamentos essas distâncias normalizam? Quais recortes são instituídos no teatro brasileiro a partir dessa realidade? Como descentramos lugares de poder nas artes da cena?
A circulação de criações artísticas faz parte de um projeto de país e impacta os grupos e artistas que saem de seus lugares de origem, que conseguem apresentar suas obras noutros contextos e, assim, pensá-las a partir de outras perspectivas, mas também quem se aproxima de um espetáculo criado numa realidade diversa.
Nesse sentido, é muito importante que o Festival de Curitiba consiga, cada vez mais, descentrar o Sudeste, especialmente São Paulo, do seu eixo curatorial. Não só para que os artistas de outras regiões possam ter a oportunidade de se apresentar no maior festival de artes cênicas da América Latina, mas para que o festival possa ampliar o seu escopo de teatro brasileiro.
É significativo que o público de Curitiba e de tantas outras cidades do Brasil tenha acesso ao espetáculo do Ateliê 23, por exemplo. Cabaré Chinelo nos revela uma parte da história do país. Confronta os espectadores a cada apresentação com a imagem de uma Manaus “Paris dos Trópicos” que abrigava um esquema de prostituição, em grande parte forçada, que incluía uma rede de tráfico internacional de mulheres, e diversos tipos de violências, inclusive contra crianças e adolescentes.
Com direção de Taciano Soares, que assina a dramaturgia ao lado de Eric Lima, e codireção da artista argentina Jazmín García Sathicq, a peça reúne 13 atrizes – Allícia Castro, Ana Oliveira, Andira Angeli, Bruna Pollari, Daniely Peinado, Daphne Pompeu, Emily Danali, Eric Lima, Fernanda Seixas, Julia Kahane, Sarah Margarido, Taciano Soares, Thayná Liartes, Vanja Poty e Vívian Oliveira (além das stand-in’s Amanda Magaiver, Grazi Dias, Iely Costa, Naomi Tokutomi) – na tentativa de resgatar cenicamente resquícios das histórias dessas mulheres transformadas em mercadorias a partir da prostituição compulsória. Há dois atores em cena, Taciano Soares e Eric Lima, e a banda que acompanha o espetáculo é formada exclusivamente por homens, Guilherme Bonates, Stivisson Menezes e Yago Reis.
Cabaré Chinelo é um espetáculo musical de ficção, construído a partir de documentos históricos, arquivos elaborados no cotidiano daquele contexto, seguindo a perspectiva masculina, já que jornalistas, policiais e médicos, profissionais responsáveis respectivamente pelos textos de jornais, anotações policiais e prontuários médicos também eram homens, que viviam no início do século XX. A pesquisa histórica do espetáculo é assinada por Narciso Freitas.
Uma das questões que perpassa o espetáculo está na natureza desses registros: os arquivos não revelam as histórias dessas mulheres, mas as violências que marcaram suas existências. Quem são essas mulheres é uma resposta impossível de ser respondida a partir de uma notícia de jornal, como a do Jornal do Commercio (sem data registrada), cuja manchete é: “A derradeira noite de uma decahida”, seguida pela linha fina: “Uma infeliz transviada foi encontrada morta no seu leito, hontem”.
Ou de uma notícia da coluna “Factos policiaes” do Jornal do Commercio de 2 de fevereiro de 1909, que pode soar a um leitor desavisado apenas uma crônica jocosa: “É uma meretriz desaforada a tal Maria não vou nisso. Ontem, arranjando pelos botequins e tabernas um formidoloso porre, a Maria virou gerico e deu de palavriado que foi um gosto. Nem mesmo famílias a marafona respeitou. E a polícia que muito gosta de receber visitas de personagens como ela, convidou-a para ir passar a noite no xadrez da 2ª delegacia, onde a Maria dormiu sua soneca de ressaca como se estivesse em leito de rosas”. Os dois arquivos compõem o programa do espetáculo, acessado pelos espectadores durante a sessão.
A escritora americana Saidiya Hartman, professora da Universidade Columbia, em Nova York, estudiosa da diáspora africana, autora de livros como Perder a mãe e Vidas rebeldes, belos experimentos, escreveu sobre os dilemas com os quais se depara em seu trabalho no ensaio Vênus em dois atos: “Eu quero fazer mais do que recontar a violência que depositou esses traços no arquivo. Eu quero contar uma história sobre duas garotas capazes de recuperar o que permanece adormecido – a aderência ou reivindicação de suas vidas no presente – sem cometer mais violência em meu próprio ato de narração. É uma história fundamentada na impossibilidade – de escutar o não dito, traduzir palavras mal interpretadas e remodelar vidas desfiguradas – e decidida a atingir um objetivo impossível: reparar a violência que produziu números, códigos e fragmentos de discurso, que é o mais próximo que nós chegamos a uma biografia da cativa e da escravizada”.
As questões trazidas por Saidiya Hartman, que passam por uma “ética da representação histórica” e pela inevitabilidade da reprodução de um certo grau de violência ao contar as histórias de mulheres escravizadas, podem ser transpostas à realidade com a qual se deparou o Coletivo Ateliê 23, ao decidir retratar os crimes contra as mulheres na Manaus da Belle Époque. Como fissurar a historiografia oficial, que invisibilizou um esquema de tráfico de mulheres, de prostituição forçada, de abuso e estupro de crianças e adolescentes, sem que esse resgate histórico esteja ancorado na reprodução simbólica da violência?
Assim como é impossível dizer quem são essas mulheres por meio desses arquivos históricos, também me parece impossível formular uma resposta a essa questão que não seja incompleta, contraditória, que não suscite dúvidas e debates. E essa é uma discussão que atravessa as vivências tanto de artistas quanto de espectadores, no cotidiano da criação ou da recepção de um trabalho artístico, qualquer que seja a sua linguagem.
Em Cabaré Chinelo, há uma opção dramatúrgica pela representação das violências a que foram submetidas as mulheres. O espetáculo avança a partir de cenas que escancaram a violência a partir de uma perspectiva masculina e, não só isso, machista. Será que, em 2024, é preciso bater no rosto de uma mulher em cena? Cuspir no rosto dela? Reproduzir a cena de um estupro? Qual a dimensão da violência simbólica e da impotência a que somos submetidas, nós mulheres, ao assistirmos, sentadas na plateia de um teatro, quietas, caladas, a um homem colocar os dedos na boca de uma mulher sem que esse seja o desejo da personagem feminina? Há ainda as cenas de assédio e violência moral, as que passam pela dimensão da humilhação.
É como se as histórias individuais, mesmo que ficcionais, mas que possuem particularidades, nuances, perdessem força diante de um conjunto que se faz único, porque o que sobressai é a violência. Qual o vislumbre de humanidade dessas mulheres que se dá a ver? Como essas histórias teriam sido contadas se a perspectiva fosse exclusiva ou prioritariamente feminina?
A estrutura do patriarcado operante na cidade viabilizou a existência da violência contra a mulher na história, mas a reprodução simbólica dessa estrutura nas artes da cena enfrenta questões importantes. Ainda que a intenção seja visibilizar a violência e, por meio do choque e da repulsa causados, tentar impedir que isso continue acontecendo na contemporaneidade, os modos e efeitos dessa reprodução precisam ser debatidos.
É provável que mulheres tenham se permitido pensar sobre violências sofridas, ou mesmo externalizá-las, a partir da vivência do espetáculo, mas isso não diminui a importância da questão levantada que, como pontuei anteriormente, diz respeito não só a Cabaré Chinelo, mas aos artistas que enfrentam em suas criações questões que perpassam a violência e aos espectadores que vão entrar em contato com essas obras.
Em Cabaré Chinelo, a encenação potencializa a presença das atrizes e o impacto das situações pelas quais elas passam: mesmo que o espetáculo tenha sido encenado no palco italiano, com a plateia sentada frontalmente em frente ao palco, as mulheres circulam pelo teatro, entre as fileiras, chegando perto da audiência, suas respirações próximas às nossas nucas, nossas reações misturadas ao registro de suas atuações.
À exceção da cafetina, Ana Maria da Conceição, que era conhecida como “dona Mulata”, as atrizes simulam o entorpecimento, inclusive porque, como nos mostram os registros médicos, para tratar sífilis, por exemplo, elas tomavam injeções produzidas com compostos químicos à base de chumbo. Esse registro interpretativo reafirma a dificuldade de captura da narrativa por parte das mulheres. Elas estão, em sua maioria, em estados alterados de consciência. Em determinado momento, o texto reforça o quanto a dimensão das histórias e das memórias dessas mulheres foram embaralhadas: elas não sabiam nem mais dizer de onde vinham.
Nesse espetáculo que tem na música composta originalmente uma tentativa de equilibrar os estados e as tensões ao longo da encenação, há ainda um recorte significativo naquele contexto: o racismo. A cafetina “dona Mulata”, ainda que aparente ser detentora de certo poder (“Mesmo te entregando como uma cadela, eu te protejo”), está submetida ao sistema do patriarcado, à hierarquia que julga que mulheres não valem nada. E uma mulher preta então… “Eu não sou polaca. Eu sou preta. Vocês não sabem o que é estar na minha pele”.
O chamado final do espetáculo, um grito que nos atravessa como mulheres, vítimas potenciais de violência, é puxado justamente pela coragem de “dona Mulata” ao se rebelar e assumir o seu nome, Ana Maria da Conceição. A atuação de Vívian Oliveira, em seu primeiro trabalho como atriz, é um dos destaques do espetáculo.
Aliás, há uma dimensão importante nos bastidores: são jovens atrizes e atores, boa parte deles iniciando suas formações artísticas, se envolvendo em pesquisas acadêmicas que ampliam as discussões do espetáculo, e que estão movimentando uma geração de novos artistas na cidade numa companhia de teatro de pesquisa que existe há 10 anos com atuação continuada.
Isso diz muito do desejo de revirar o passado, do presente de inquietação e das possibilidades de futuro. É preciso coragem para olhar as histórias dos nossos lugares de origem, meter a mão nas sujeiras que nos compõem como sociedade, mexer no que estava “quieto”. A arte brasileira precisa disso, em todos os lugares do país.
O espetáculo Cabaré Chinelo foi apresentado nos dias 2 e 3 de abril de 2024 no Festival de Curitiba.
Ficha técnica:
Direção: Taciano Soares
Co-direção: Jazmín García Sathicq
Dramaturgia: Eric Lima e Taciano Soares
Elenco: Allícia Castro, Ana Oliveira, Andira Angeli, Bruna Pollari, Daniely Peinado, Daphne Pompeu, Emily Danali, Eric Lima, Fernanda Seixas, Julia Kahane, Sarah Margarido, Taciano Soares, Thayná Liartes, Vanja Poty e Vívian Oliveira
Stand-in’s: Amanda Magaiver, Grazi Dias, Iely Costa, Naomi Tokutomi
Direção musical e coreografia: Eric Lima
Banda e arranjos: Guilherme Bonates, Stivisson Menezes e Yago Reis
Assistência de direção: Carol Santa Ana e Eric Lima
Assistência musical: Guilherme Bonates e Sarah Margarido
Preparação corporal: Viviane Palandi
Preparação vocal: Krishna Pennutt
Cenografia: Juca Di Souza
Figurino: Eric Lima
Iluminação: Tabbatha Melo
Operação de luz: Lore Cavalcanti
Maquiagem e cabelo: Eric Lima e Taciano Soares
Bilheteria e técnica de palco: Titto Silva
Pesquisa histórica: Narciso Freitas
Assessoria de comunicação: Manuella Barros
Fotografia e vídeo: Hamyle Nobre e Rudá Marques
Identidade visual: Eric Lima
Produção: Ateliê 23