É menino ou menina? É TRAVESTI!
Mas afinal, você sabe o que significa ser uma travesti? Já dormiu com uma travesti? Já beijou? Já andou de mãos dadas com uma travesti pela rua? Já passou o Natal em família com ela? Já amou uma travesti? Admira, consome e indica o trabalho de travestis? Você… você sabe o que é cis? Quando você se descobriu cis?
Essas são apenas algumas das muitas questões suscitadas ao longo da peça Manifesto Transpofágico, pela qual a transpóloga Renata Carvalho, atriz e dramaturga da peça, nos guia – com ar e gentileza de professora – através do formato aula-performance. Divergindo do movimento da peça, aqui o nome e a trajetória de Renata chegam antes de seu corpo: sua história e sua obra vão para além dessa gaiola. Tendo começado a fazer teatro em 1996, seu manifesto se situa como a terceira parte de uma trilogia que se iniciou com o solo Dentro de mim mora outra (2012), seguido pelo solo Eu travesti (2015) e, em 2019, Renata estreou seu Manifesto Transpofágico na Mostra Internacional de Teatro (MIT-SP).
Atualmente, Renata tem se empenhado em desenvolver sua transpologia, dedicando-se a uma pesquisa acerca da representatividade trans, os estereótipos que acompanham essas representações, desdobrando as narrativas nas quais o corpo trans – sobretudo o corpo travesti – se insere, e desfazendo o mito do corpo neutro do artista, denuncia práticas como as da transfobia recreativa e do transfake. Me interesso especialmente pela questão das narrativas e estereótipos que Renata tem catalogado acerca do corpo trans em cena, passando por paisagens como: a narrativa de travestis com caracteres masculinos acentuados e exagerados, a narrativa da travesti pauperizada, a presença da travesti no fundo da cena como sinal de perigo, a travesti sexualizada e fetichizada, a narrativa da farsa na qual a travesti guarda um segredo – “a verdade de seu sexo” – e que, frequentemente tem como consequência a narrativa da revelação, na qual a travesti precisa performar uma cena nua para matar a curiosidade cis e revelar o que tem entre as pernas. Sua transpologia se torna ainda mais instigante pela possibilidade da sua pesquisa culminar na construção de cenas que a atriz escreve para si mesma. De antemão, vou à peça com a seguinte questão em mente: o que a transpóloga produz quando é sujeita da própria narrativa?
Sem mais delongas, que entre o corpo em cena: em  Manifesto Transpofágico, Renata abre o espetáculo nos apresentando seu corpo recortado por luzes. Sem rosto e com seu tronco destacado por um feixe de luz, a atriz permite que a iluminação destaque zonas do seu corpo e devolva esse corpo à plateia tal como ele é lido diariamente: através de objetos parciais. Corpo-objeto-peito-siliconado, corpo-objeto-pomo-de-adão, corpo-objeto-mãos, corpo-objeto-neca. Corpo-objeto, enfim. Corpo-abjeto. Seu corpo, corpo de travesti, é percebido pela cisgeneridade como um corpo sem rosto atravessado por traços, larguras, tamanhos e gestos conflituosos para o sistema binário e normativo de gênero, que elege – conscientemente ou não – áreas para sublinhar ou ignorar em busca de conseguir amarrar esse corpo como feminino ou masculino sob uma pespectiva cis.
Nessa peça dividida em dois atos, Renata dá início à primeira parte narrando a história do corpo travesti: a história do próprio corpo que carrega – que nomes esse corpo já teve, que mudanças atravessou e quais marcas essas travessias deixaram –, e a história do corpo travesti no Brasil através da presença e repercussão na mídia impressa, em programas de TV ou em buscas pela internet. Memórias pessoais e arquivos da ditadura se misturam a histórias das técnicas, plásticas e materiais utilizados para suplementar o corpo travesti. Corpo-silicone-industrial-barra-1000, corpo-farmacopornográfico, corpo-navalha, corpo-calcinha-de-aquendar, corpo-redesignado-cirurgicamente, corpo-prostituição, corpo-soropositivo, corpo-contágio, corpo-perigo. Da operação Tarantula à disseminação do HIV pelo mundo, segue-se a produção de um estereótipo, produção de um corpo único e de uma história achatada para esse corpo, que tem como consequência o apagamento das singularidades e diferentes subjetividades das diversas experiências do ser travesti.
Ao fim do primeiro ato, assistimos ao relato de uma travesti chamada Bartô, cheia de cicatrizes deixadas por um encontro com um policial, no qual a própria se corta para escapar da prisão. “Corta mais… Agora corta o pescoço. Vai, corta mais” – ouvimos ela repetir o pedido do policial, enquanto nos sentimos ali dilacerados pela crueza do relato. Somos cortados pela mesma lâmina. Mas será que só é possível falar desses corpos evocando as memórias da ferida?
Renata trava aí.
Qual rota é possível seguir?
Se  entendermos um manifesto como um texto de caráter convocatório que busca evidenciar uma questão e/ ou denunciar um problema político, para a partir de sua declaração pública incitar um grupo ou comunidade a agir em determinada direção, fica evidente o motivo pelo qual Renata propõe sua transpofagia em tom de manifesto. Seu chamamento ressoa e é preciso ouvir: já passou da hora de adquirirmos repertório e construirmos coletivamente novas narrativas para os corpos trans e travesti.
Mas como construir narrativas alternativas sob as ruínas de velhas estruturas? Dá-se início então à segunda parte da peça, na qual Renata se propõe a fazer um trabalho de base com a parcela cis de sua plateia e, na qualidade de transpóloga, responde às perguntas mais ingênuas – sem julgamentos – que seus espectadores possam ter acerca da travestilidade e transgeneridade. A destreza de professora se sobressai durante a interação com a plateia, na qual Renata responde muito didaticamente e distribui perguntas para que até mesmo o público que ainda não conseguiu formular suas próprias questões possa vir a ter algumas dúvidas respondidas. O jogo cênico instaurado pela dinâmica das perguntas e respostas funciona sobretudo graças à língua afiadíssima de Renata, sempre pronta para responder com uma piada e tornar até as situações potencialmente constrangedoras sustentáveis graças ao humor. Importante ressaltar que, apesar de parecerem improvisadas, essas colocações devem-se a um trabalho rigoroso de atuação e construção dramatúrgica – travatúrgica – muito distante de qualquer espontaneísmo.
A atriz consegue criar um espaço acolhedor no qual todos conseguem rir de si mesmos sem perder a seriedade do assunto. O limiar de tolerância é negociado mutuamente: enquanto Renata se propõe a sustentar – às vezes estoicamente – comentários que reproduzem transfobia estrutural, a parcela mais conservadora de sua plateia também vai adentrando o jogo e ganhando flexibilidade para topar se expor e se colocar no papel de aluno conforme o segundo ato avança. Digo “aluno”, no masculino, pois justamente os homens hétero cis é que parecem ter maior dificuldade de se colocarem nesse papel.
Apesar de a travaturgia ser baseada nas escrivivências da atriz, a peça se endereça mais às pessoas cis do que às pessoas trans. Ao se colocar na disposição de responder dúvidas, a atenção naturalmente se volta aos cis presentes, afinal “se você não sabe o que é cis, provavelmente você é”. Os relatos sobre quem tem gente trans na família, quem já beijou ou convidou uma pessoa trans para o natal também são realizados por pessoas cis e parecem estar a serviço das demais pessoas cis. O objetivo, me parece, é ver como são poucas as pessoas cis presentes que tem afetos ou histórias com pessoas trans e, então, ouvir seu depoimento sobre essas relações, mas acredito que seria igualmente interessante ouvir sobre afetos transcentrados ou ouvir sobre essas histórias entre pessoas cis e trans sob a perspectiva das pessoas trans presentes. Ouvir diferentes narrativas e pontos de vista dos e das trans na plateia endossaria ainda mais o argumento central da peça de que não existe uma história única que dê conta de todas as expressões e experiências do ser trans.
Foi um privilégio ter a oportunidade de assistir a essa peça duas vezes: a primeira vez em abril de 2023 no Rio de Janeiro e a segunda vez em março de 2024 no Festival de Curitiba. A primeira impressão deixada pela apresentação de 2023 era a de assistir Renata finalizar a peça passando por cima de um desconforto declarado – que era a ideia de se apresentar nua –, atendendo ao desejo de uma minoria que acreditava que a peça deveria terminar com ela removendo sua calcinha (único figurino, junto a uma choker escrito “travesti”, utilizado pela atriz durante toda a peça). Ao som de My Body Is a Cage da banda Arcade Fire, assistíamos Renata sucumbido à narrativa da revelação – denunciada pela própria – ao som dos versos traduzidos “meu corpo é uma prisão”. Nesse sentido, a peça tem envelhecido como vinho. Na mais recente montagem em terras curitibanas, apesar de fazer uma votação para saber quem gostaria que a atriz terminasse sem a calcinha, Renata sustenta e respeita seu limite de não gostar de ficar nua, toma as rédeas da situação e não se permite ser tocada – como permitia quando idealizou a peça – e nem deixa com que essa plateia majoritariamente cis decida o desfecho da sua narrativa. Assistimos a esse corpo-potência, corpo-que-se-pariu, escritora da própria história, encerrar a peça com a mesma trilha sonora, mas dessa vez os versos que mais ressoaram para mim são os que se seguem ao refrão e clamam “deixe meu corpo livre, deixe meu corpo livre”.
Evoé, Renata! Evoé, Traviarcado! Que seu corpo seja livre para performar as mais diversas narrativas. Enquanto for possível complexificar e contar novas histórias, se atualiza como possível o mundo projetado pelo seu Manifesto Transpofágico.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e Atuação: Renata Carvalho (@renatacarvalhooficial); Direção: Luiz Fernando Marques (Lubi); Luz: Wagner Antônio; Videoart: Cecília Lucchesi; Operação e Adaptação de Luz: Juliana Augusta; Produção: Corpo Rastreado (@corporastreado); Co-Produção: Risco Festival, MITsp e Corpo Rastreado; Difusão: Corpo a Fora e FarOFFa.
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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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