O uso da letra X para indicar “conteúdo adulto” é uma herança da burocracia do cinema americano. No final dos anos 1960, a entidade que regula as exibições por lá criou uma classificação em que o G designava filmes para o público em geral e um X marcava as sessões permitidas só aos maiores de idade.
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A medida era uma reação ao cinema da chamada “Nova Hollywood”, os filmes feitos por uma geração de diretores autores que colou sexo e violência nas narrativas e soterrou décadas de cinema “água com açúcar”.
O mundo imitou o padrão americano, mas na década seguinte, a ascendente indústria do cinema pornô, como sempre, deu um passo à frente: adotou o XX para os filmes que tinham cenas explícitas de sexo e, depois, o XXX para os com cenas hardcore de práticas sexuais, digamos, não convencionais.
A Mostra XXX
Toda essa conversa para explicar o uso triplo da 24ª letra do alfabeto no batismo da Mostra XXX que foi uma novidade do Festival de Curitiba em 2012. A primeira mostra do gênero em 21 edições do festival até então, reuniu três espetáculos com “temática adulta”, com limitação de entrada para menores de 18 anos.
Quer dizer, o Festival de Curitiba já tinha programado muitas e ótimas peças com temas de sexualidade desde sua primeira edição. A ideia da Mostra XXX, contudo, era atender uma demanda dupla do público e da curadoria da grande Lúcia Camargo, como o diretor do festival, Leandro Knopfholz, explicou na entrevista de lançamento da programação:
“A proposta da Mostra XXX veio para atender um antigo anseio do público e surge para contrabalancear um panorama de mostras que, em geral, têm como foco a comédia e a diversão”.
Além disso, tem a questão do “marketing do proibido”, pois assim como aconteceu com os movies, a classificação X é antes um problema, mas depois vira um grande chamariz. Naquele fevereiro em Curitiba, o público esgotou imediatamente os ingressos das três peças.
Algo esperado, e bastante humano, pois desde os pródomos do teatro, grande parte do público aprecia e muito as histórias de sacanagem, no melhor sentido do termo.
Tanto é verdade que duas das peças da Mostra XXX eram baseadas no mesmo texto, o Satyricon, escrito há mais de dois mil anos pelo prosador romano Petrônio, provavelmente no ano 60 da Era Comum.
Repleto de críticas políticas, morais, sexuais e sociais, Satyricon é basicamente a história de um triângulo amoroso homossexual entre três sujeitos libertinos, Encólpio, Ascíltos e Gíton, na Roma decadente e caótica do tempo do imperador Nero.
Mostra XXX: Delírio, Suburra e Comunhão
Um dos espetáculos era Satyricon Delírio, do grupo Delírio, com direção do curitibano Edson Bueno. O outro Satyros’Satyricon, do grupo Os Satyros, de São Paulo. E a terceira peça era Ato de Comunhão, premiado trabalho de Gilberto Gawronski que dirigia e atuava no monólogo.
Nenhum tinha cenas de sexo XXX, mas cada qual, à sua maneira, encantou e causou certo escândalo nas plateias – naquele que talvez tenha sido o último momento da história em que algum escândalo ainda foi possível.
A montagem do grupo Delírio aproximava o clássico da farsa e da comédia. A tradução direto do latim era de Paulo Leminski, um poeta que sabia falar a língua de Petrônio
Na primeira versão, a peça tinha 34 atores no palco, quase três horas de duração e iluminação impecável do “gênio da lâmpada” Beto Bruel. Engraçada e abusada, a peça entrou no repertório do grupo e fez bela carreira circulando pelo Brasil nos anos seguintes.
Em um blog – que eram muito comuns à época – um espectador e crítico amador disse “sentir o cheiro do suor e dos fluidos dos atores, o que, ao longo da peça, vai se tornando mais e mais abjeto até que os belos corpos se tornem uma vitrine de carne podre e almas sujas”. Ou seja, o delírio de Bueno deu o resultado esperado.
Já o Satyricon dos Satyros, com texto adaptado pelo jornalista e cineasta Evaldo Mocarzel, foi objeto de uma divertida resenha do meu colega jornalista Aldrin Cordeiro, que assinava como Buzz Aldrin numa coluna sobre entretenimento com pegada LGBTQI+ num jornal tradicional de Curitiba. Separei alguns dos melhores trechos:
“…provocou reações intensas no público. O público heterogêneo era formado por meninos e meninas jovens (claro, acima de 18 anos), assim como pessoas na casa dos 50, todas curiosas para saber o que a companhia Os Satyros havia preparado para aquela noite ao longo dos últimos nove meses. Sexo, linguagem de baixo calão, poucas roupas?! Tudo pensado detalhadamente para o exagero cênico da direção de Rodolfo García Vázquez”.
E ainda:
“… o público era recebido com uma instalação cênica contava com um Jesus que bebia cerveja e pedia para os mortais fazerem desejos. A partir dali, fotografias eram proibidas … Uma jovem de camisola tocava no piano a canção La Dispute, de Yann Tiersen. No decorrer, uma mulher distribuía currículos, em que “safadinha” era o eufemismo mais simples que eu poderia escrever para ilustrar o currículo sexual daquela senhora …Cenas de nudez, com as nádegas ao alto, apareceram nos primeiros minutos do espetáculo para dar o tom do texto. Entre palavras sujas e impublicáveis, surpresas, como frases de sucesso da internet”.
No final da peça, a titulo de epílogo, havia a “Suburra”, uma “festa-performance” em que o público devia interagir com o elenco. “Uma rave com atores nus, fazendo ginástica, dançando e cantando na tentativa de animar os últimos presentes”, disse Aldrin. O público, porém, mesmo depois de todas as preliminares, ficou tímido e o jornalista lamentou que o vinho cênico não tivesse sido distribuído também para a plateia.
O terceiro espetáculo da Mostra XXX foi Ato de Comunhão. Essa eu assisti e era um formidável soco no estômago.
Tratava-se de um monólogo com texto de Lautaro Vilo, sobre um homem que relembra três momentos de sua vida: a festa de aniversário de seus oito anos, a morte de sua mãe e um jantar bastante peculiar com um homem que conhecera pela internet.
Esta última cena era livremente baseada num true crime que ficou conhecido na mídia, anos antes, como o caso do “canibal alemão”. Em entrevistas à época, Gawronski, “o festival ousou ao programar uma mostra com esse conteúdo, para que se possa discutir a sexualidade”.
Mostra XXX: Única Edição
Na entrevista de balanço do festival, Knopfholz comemorou o sucesso do evento rated-X. “Todos os espetáculos lotaram. As páginas relativas às peças também foram as mais acessadas do site do Festival. Há grande possibilidade de que em 2013 a mostra se repita”, disse à imprensa.
Mas não aconteceu. Doze anos depois, eu especulo que seja por que o mundo mudou muito e rápido a partir dos anos seguintes. Veio o tempo da dominação da esfera pública pelas redes sociais e da convulsão social que precipitou um contubérnio político no Brasil.
Um caldo que ao ferver afetou a percepção coletiva da sociedade sobre temas morais e extremou a violência das reações. Poucos anos mais tarde, tivemos a grande caça às bruxas da performance La Bête, inspirada em Bichos, de Lygia Clark, e realizada por Wagner Schwartz, e quem ainda não tinha visto o tamanho do monstro pelo retrovisor, assustou-se.
Por outro lado, temas de sexualidade, diversidade e identidade ganharam protagonismo nas pesquisas e produções dos grupos e autores teatrais com tamanha força que uma mostra adulta virou uma coisa “muito 2012” e deixou de fazer sentido.
A não ser, é claro, que as dramaturgias passem a trabalhar conteúdos que justifiquem o triplo XXX da indústria do entretenimento adulto. Nas marchas e contramarchas do mundo, não sei se este dia está mais perto ou mais longe do que estava em 2012.
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De hoje até 20 de março de 2025, sempre as quintas, o Fringe vai lembrar de momentos marcantes das trinta e duas edições do Festival de Curitiba.