Muitas vezes, quando estou muito alegre (ou muito triste), me socorro de um arquivo de áudio de 40 minutos onde cabe todo meu mundo. Ele me traz de volta à terra “de onde o vento encosta o lixo e as pregas botam os ovos”.

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Neste ano da graça de 2024, que está indo mais rápido que soldo de milico, se completam 50 anos do formidável disco Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas Quebradas do Mundaréu, que pode ser considerado – por que não? – como o primeiro podcast da história e, se assim for, na minha opinião, é também o melhor.

Produzido em janeiro de 1974 e lançado em algum momento daquele mesmo ano pela gravadora Chantecler, o álbum é uma espécie de cosmogonia do samba paulista apresentada pelo dramaturgo Plínio Marcos.

Plínio Marcos (1935-1999) foi um dramaturgo, escritor e agitador cultural que escrevia obras críticas e transgressoras com personagens vindos das camadas sociais periféricas. Das quebradas do Mundaréu.

“Quem quiser saber meu nome, não precisa perguntar. Eu me chamo Plínio Marcos, sou pagodeiro do lugar”. Foto: Ary Brandi/Reprodução

Cosmogonia do Samba Paulista

No disco, Plínio nos chama deambular pela música feita pelo povão paulista. Com sua prosa inigualável, apresentou ao grande público três compositores do samba: Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro, cada qual mestre de uma vertente do samba.

O samba do interior do estado, das religiões africanas, os sambas de amor, os sambas que falam de racismo e denúncia social. Quem não chora ouvindo a apresentação de Plínio e a interpretação de Geraldo Filme para seu clássico Silêncio no Bixiga, uma homenagem ao lendário sambista Pato N’Água, já morreu e ainda não sabe.

Pato N’Água, em desfile na década de 1950. Foto: Centro de Documentação e Memória, Unicamp/ Reprodução

Líder da torcida do Corinthians e da escola de samba Vai-Vai, Pato N’Água, ao que consta, comandava com seu apito as multidões e morreu em circunstâncias misteriosas. Dizem que foi executado pelo famigerado esquadrão da morte. Plínio Marcos resume: “Como foi, como não foi, ninguém sabe, por que morto não fala”.

Há um texto brilhante sobre o projeto todo escrito pelo historiador Daniel Costa no Jornal GGN, onde ele explica, entre outras coisas, que o disco é resultado de um misto de show e espetáculo teatral que já vinha fazendo com esses e outros músicos e que, com algumas variações, recebeu diferentes nomes

A peça chegou a ser lançada em disco, mas não teve o sucesso agudo e perene das Quebradas do Mundaréu, que, se fosse produzido hoje, seria chamado de um “podcast narrativo”.

Segundo o já citado texto de Daniel Costa, ele mesmo citando a biografia de Plínio Marcos escrita por Osvaldo Mendes, “o sucesso rendeu, em setembro de 1974, convite da Secretaria de Turismo da Prefeitura para uma série de 24 palestras-shows, intitulada que deu um bom alívio artístico e financeiro para o dramaturgo, que era perseguido tanto pela censura quanto por um esnobismo intelectual nessa época de vacas magras para ele”.

Cinquenta anos depois, é um deleite absoluto ouvir As Quebradas do Mundaréu, seja em em LP ou nas plataformas de streaming: a união perfeita entre música e literatura embalada da melhor forma imaginável, “pois um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”:

 

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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