Por Felippe Aníbal *

Mesmo antes de a cortina de veludo vermelho-bordô do Auditório Bento Munhoz da Rocha Netto – o Guairão – subir pela primeira vez, naquele 12 de dezembro de 1.974, o Paraná já vivia o frisson da inauguração do maior e mais importante espaço do Complexo do Teatro Guaíra.

Nos dias anteriores, a imprensa cantava em verso e prosa as dimensões colossais e a estrutura da nova casa de espetáculos – uma das dez maiores do mundo, assinalava o governo do estado.

Nessa onda ufanista, não havia quem não esfregasse as mãos, prevendo uma solenidade sem precedentes. Se do ponto de vista social a cerimônia foi, mesmo, um sucesso de marcar época, artisticamente, a peça de inauguração teve seus problemas para subir ao palco.

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No início de dezembro, o Guaíra não saía das manchetes. Os jornais celebravam os arcos de concreto armado do prédio, considerado um marco da arquitetura moderna no Paraná – projeto do engenheiro Rubens Meister.

Enfatizavam, sobretudo, as escadas helicoidais em mármore de Carrara, que conduzem ao piso superior – à época, foram consideradas um feito na engenharia por não terem apoio central.

Também destacavam as dimensões da casa – que ocupa 10 mil metros quadrados e que dispunha de 2.350 lugares, contando os dois balcões – e descreviam a plataforma móvel (o fosso), que tinha capacidade para uma orquestra de até 120 figuras.

“A maior peça do palco será o ciclorama (pano de fundo) mecanizado. Com 45 metros de largura, por 22 de altura é para projeção de cenários. Foi confeccionado na Escócia, sendo que toda parte mecânica vem da Grã-Bretanha”, louvava a imprensa, em matéria de jornal não identificado, que consta da coleção da Biblioteca Pública do Paraná (BPP).

O entusiasmo coletivo aumentou à medida que se anunciavam detalhes da solenidade de inauguração que precisou ser adiantada em pelo menos uma semana para contar com as presenças do presidente-ditador Ernesto Geisel, da primeira-dama, Lucy Geisel, e da filha do casal, Amália Lucy, que viriam a Curitiba só para assistir ao espetáculo. Na véspera, desembarcaram no Aeroporto Afonso Pena, recebidos com honras pelo governador Emílio Gomes e pelos comandantes das Forças Armadas.

Para dar dimensão ao êxtase que a capital paranaense vivia, o jornal Gazeta do Povo destacou que “centenas de pessoas” aguardavam nas ruas a passagem da comitiva presidencial e que outras “centenas de pessoas aplaudiam a chegada do presidente” ao Hotel Mabu, onde ficou hospedado. Tudo parecia correr bem. Mas não era bem assim nos bastidores do teatro.

Quando começou a se delinear a inauguração, ainda no início de 1974, o jovem J.D. Baggio foi recrutado para produzir o espetáculo, escrito para a ocasião: o musical “Paraná, terra de todas as gentes”, escrito, conta, meio às pressas e a pedidos, pela jovem dupla de autores Adherbal Fortes de Sá Junior e Paulo Vítola.

Seguindo a recomendação geral de se apostar em nomes consagrados nacionalmente para dirigir a peça, Baggio pôs o roteiro debaixo do braço e viajou ao Rio de Janeiro. Tentou o consagrado Flávio Rangel, que, depois de ler o texto, declinou da empreitada por considerar o texto “folclórico demais”.

O produtor, então, arriscou Gianni Ratto, diretor e cenógrafo italiano radicado no Rio e que já tinha dirigido grandes, do naipe de Fernanda Montenegro, Paulo Autran e Sérgio Brito. Baggio conseguiu a proeza de trazer Ratto a Curitiba, mas o italiano também recusou dirigir a montagem.

Como o tempo urgia, recorreu-se a um prata da casa: Maurício Távora, um dos pioneiros da televisão no Paraná. Nem tudo, no entanto, estava resolvido.

Como a peça consistia numa colagem de cenas que se passavam em colônias de migrantes que compõem a identidade paranaense, a montagem musical seria determinante. Até por isso, Baggio estava reticente com a capacidade da Orquestra Sinfônica da UFPR – chamada pelas más-línguas de “Orquestra Sanfônica”.

Chama o Waltel

A menos de um mês do espetáculo, Baggio recorreu ao maestro Waltel Branco, que era um dos medalhões da Rede Globo e da indústria fonográfica. Branco se comprometeu a preparar e reger a orquestra, e foi além: em tempo recorde, fez os arranjos de todas as músicas, para todos os instrumentos.

“Em dois dias, ele fez as partituras para os mais de setenta músicos, para todos os naipes… sem ter sequer um violão. [Compôs] direto na pauta, só com lápis e borracha. Aquilo era incrível”, disse-me Baggio.

Àquela altura, a produção já se via à beira de um ataque de nervos. A montagem envolvia 294 pessoas, entre atores, músicos e integrantes dos grupos folclóricos, o que requeria uma logística surreal para os preparativos.

O grupo folclórico japonês, por exemplo, tinha que ensaiar à noite, mas, no máximo, até às 21 horas, porque eram dados a dormir cedo. O grupo holandês vinha de Castro, a 160 quilômetros de Curitiba, só para ensaiar. O problema é que a maioria deles trabalhava na pecuária leiteira.

Ou seja, precisavam ordenhar suas vacas duas vezes ao dia – às 5 horas da manhã e às 17 horas –, de modo que tinham que concentrar as atividades artísticas neste intervalo.

Enquanto isso, eletricistas, marceneiros e até pedreiros davam os últimos retoques no teatro, o que fazia com que se ensaiassem entre barulho de marteladas e faíscas de soldadores elétricos. A própria equipe chegou a duvidar que o espetáculo fosse ao palco e houve quem previsse um retumbante fracasso.

Traje a Rigor

Na noite de inauguração, o Guaíra estava envolto em uma atmosfera de glória. Os mais de 2,3 mil convidados – todos rigorosamente selecionados – iam chegando aos poucos, evidenciando o tom elitista da solenidade, conforme observaria a imprensa: “Pelo saguão, circulavam as mais altas personalidades curitibanas.

Trajados a rigor, cada qual tomava seu lugar, ante indicação das recepcionistas, em longos uniformes”. Soldados com farda de gala, toda branca, postavam-se à entrada, enquanto “luzes brancas davam uma sensação de retorno à época de luxo romano ou ao requinte das cortes francesas”.

O governador Emílio Gomes e o superintendente do Guaíra, Sale Wolokita, não escondiam o sorriso. Pouco depois das 20 horas, o presidente Ernesto Geisel, acompanhado da mulher e da filha, deixou o Hotel Mabu, que ficava na via lateral ao teatro. A comitiva presidencial apenas teve o trabalho de atravessar a rua – sem escolta – e chegar ao evento, àquela altura, já praticamente lotado.

Após passar por todos os anexos, às 20h30, Geisel foi anunciado. “Foi aí, que realmente o Guaíra se ergueu e mostrou à deslumbrada (ou deslumbrante?) sociedade toda sua glória”, assinalou a imprensa. A cortina se abriu, revelando o palco que, antes se encontrava abaixo do nível das poltronas, foi se erguendo esplendorosamente, a partir dos tais mecanismos modernos e importados.

Enquanto isso, a Orquestra da UFPR começou a executar o Hino Nacional, sob regência de Waltel Branco. Ao fim dos acordes finais, a plateia levantou-se e ovacionou a execução, ao que o maestro se curvou em reverência, agradecendo em nome dos músicos. Segundo o jornal O Estado do Paraná, “o Hino Nacional foi aplaudido por quase um minuto”.

Após uma curta espera, começou, enfim, a apresentação de “Paraná, terra de todas as gentes”. O enredo girava em torno da história de Antônio Portugal, um paranaense e pai de sete filhas que, uma a uma, burlariam a autoridade paterna, para se casarem com imigrantes – justamente, as colônias que se enraizaram no Paraná: alemães, italianos, ucranianos, poloneses, japoneses, holandeses e árabes.

A cada casamento, um dos grupos folclóricos – sempre o que correspondia à nacionalidade do noivo – entrava em cena. Entre os atores, estavam nomes já bastante conhecidos no estado, como Lala Schneider, Lúcio Weber, Edson Dávila, Idelson Santos e Sansores França. Após duas horas de peça, às 22h30, caía o pano, encerrando a apresentação, sob aplausos efusivos da plateia.

Geisel, dona Lucy e a filha Amália Lucy foram levados até os bastidores, sob flashes de fotógrafos. Por detrás da cortina, o presidente trocou algumas palavras com Maurício Távora. Em seguida, cumprimentou o restante da equipe técnica, sob cobertura dos jornalistas.

A família presidencial ainda ganhou mimos de alguns dos grupos folclóricos, como tamancos holandeses e uma garrafa com bebida típica da Holanda. Houve, ainda, um coquetel no hall do Guaíra, mas logo, logo, o presidente saiu à francesa, acompanhado da mulher e da filha. “Voltou como veio: a pé. Para a inauguração de uma das maiores casas de espetáculo do mundo”, assinalava o jornal O Estado do Paraná.

“Rasgue as Fotos”

Nos dias seguintes, os jornais contavam detalhes do glamour da inauguração, que evidenciavam que o evento tinha sido um marco como acontecimento social e político. Registraram, contudo, que como apresentação artística o espetáculo tinha deixado um tanto a desejar. Salvaram-se das críticas o figurino de época e a condução musical, assinada por Waltel Branco.

O jornal O Estado do Paraná, por exemplo, apontou o arranjo e a execução do Hino Nacional como um dos pontos altos do evento. Em crítica publicada pela Folha de Londrina, a jornalista Joana Lopes escreveu: “Se alguma coisa se salva deste espetáculo literalmente nostálgico é o arranjo e a condução musical do arranjador Waltel Branco. Outro ponto de apoio positivo é o figurino de época, realizado por Luiz Afonso Burigo”.

Décadas depois, em 2016, eu entrevistava Waltel Branco no hotel em que ele morava, em Curitiba, quando o celular do maestro tocou. Do outro lado, uma funcionária da Secretaria de Estado da Cultura informava que tinham encontrado no acervo alguns registros da inauguração do Guaírão, entre os quais, havia algumas fotos em que Branco aparecia ao lado de Geisel, instantes depois do espetáculo.

De onde estava, eu o ouvi responder, secamente: “Então, faça um favor pra mim: rasgue essas fotos. Eu não devia nunca ter tirado foto com uma pessoa como esta”. Assim que desligou o telefone e antes que retomássemos a entrevista, o maestro desatou a falar sobre a ditadura, sobre como o povo não tinha noção do que se passava nos porões, o que só viera a saber após a abertura democrática. “Se eu soubesse, não teria participado”, disse.

*Felippe Aníbal é jornalista e escritor. É autor da biografia Waltel Branco, o Maestro Oculto, publicado pela Editora Banquinho em 2023

 

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O Waltel me fez dois pedidos: precisava de um copista para reproduzir as partituras com os arranjos que ele fazia como uma máquina musical e a autorização para trazer 12 músicos para reforçar a orquestra da UFPR. Aprovados os dois pedidos, veio do Rio o Germano, além de copista também clarinetista da Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Era uma figura simpaticissima, bem humorado, já acostumado com o ritmo de produção do Waltel. Instalei o Germano no Grande Hotel Moderno, de saudosa memória, num quarto-escritório utilizado também pelo Waltel. Na véspera da estreia chegaram 12 instrumentistas de primeiro nível, se não me engano todos de sopros, capitaneados por João Araújo, executivo da Som Livre, o mesmo que anos depois seria identificado como pai do Cazuza. Por discordar de várias coisas em torno da produção pedi que meu nome não constasse nos registros de tão grande empreitada.

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