Os dois atores mais premiados do cinema brasileiro nos últimos meses como há muito não se via.
Wagner Moura, o mais recente vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes, e Fernanda Torres, que no ano passado conquistou o Globo de Ouro de Melhor Atriz, estão juntos no filme Saneamento Básico, o Filme, dirigido por Jorge Furtado em 2007.
O longa acaba de ter sua cópia digital restaurada em 4K numa iniciativa de preservação da Sessão Vitrine Petrobras, que vai relançá-lo no circuito de cinemas brasileiros nesta quinta-feira (29), ao lado de outro clássico de Furtado, o premiado curta-metragem Ilha das Flores, que também foi restaurado.
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As versões restauradas de ambos os filmes já foram exibidas em sessão especial no Cine Passeio, em Curitiba, na noite do último sábado (24), com a presença de Débora Butruce, curadora dos filmes de patrimônio e coordenadora técnica das restaurações da Sessão Vitrine Petrobras.
Antes da sessão dupla, Débora ministrou uma masterclass na Sala Valêncio Xavier, onde explicou o passo a passo do processo de restauração dos filmes e a importância do trabalho da equipe que coordena para o atual momento do cinema brasileiro. “A preservação do patrimônio audiovisual é fundamental para que as novas gerações possam acessar e se conectar com a rica cinematografia brasileira”, disse.
O Fringe entrevistou Débora Butruce, uma das principais especialistas em restauração de filmes do país. Ela falou sobre os processos, os desafios do setor e a missão política de salvaguardar esse patrimônio do cinema nacional.
Fringe: Por que a escolha destes dois filmes de Jorge Furtado para passarem pelo processo de restauração?
Para a minha geração, Ilha das Flores foi assistido nas escolas, e muita gente começou a se interessar por cinema por causa dele. O filme circulou pelo mundo, foi exibido em diversos festivais. Mas há uma nova geração que talvez ainda não tenha tido essa experiência. Então, é bonito que o filme volte a circular nas salas de cinema e, quem sabe, também nas escolas — criando um fluxo reverso que ajuda a conquistar novos públicos para o cinema brasileiro, o que é uma questão central para nós.
Além disso, do ponto de vista da restauração, Ilha das Flores conecta várias questões. É um filme de 1989, filmado em película, e nunca deixou de ser exibido ao longo dos anos. Mas seu retorno às salas de cinema, ao lado de um longa-metragem do Jorge Furtado feito quase 20 anos depois — Saneamento Básico, de 2007 —, nos permite observar uma trajetória dele como cineasta.
Fringe: Qual a diferença entre digitalizar e restaurar um filme?
Todo o processo de restauração digital implica uma digitalização, mas nem toda digitalização é uma restauração. Digitalizar nada mais é do que converter um material analógico em um formato digital. Esse processo envolve várias etapas, já que estamos realizando uma migração tecnológica, mas isso não é, em si, uma restauração.
Digitalização não é simplesmente apertar um botão, carregar o filme no scanner e esperar que ele saia pronto do outro lado. Ela pressupõe algum tipo de tratamento, mas esse tratamento é diferente do processo de restauração. Na restauração, é preciso intervir mais. É um processo com outro tipo de olhar — envolve pesquisa, reunião de materiais.
É preciso aprofundar o trabalho de pesquisa, de prospecção dos materiais, de intervenção e também considerar o tempo necessário. Não posso dizer que é um processo “mais qualificado”, pois depende do caso, mas é, sem dúvida, um processo mais apurado.
Fringe: Restaurar é “melhorar” um filme?
Não. O objetivo da restauração é restituir as características originais do filme. Não é corrigi-lo, nem melhorá-lo. Muitas vezes há um exagero e até uma certa apropriação do termo “restauração”, quase como se fosse um selo de prestígio. Às vezes, quando algo aparece como “restaurado”, parece automaticamente melhor que o original — e nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, o original é melhor do que a versão restaurada. Por isso, precisamos de rigor ao falar de qualquer atividade ou processo relacionado a isso.
O resultado de uma restauração está diretamente ligado à conservação e à trajetória de conservação daqueles materiais. Ou seja, é fundamental conservar e preservar adequadamente para que o resultado final da restauração seja satisfatório.
Fringe: Tenho notado um aumento da preocupação de entidades públicas e privadas com a restauração de acervos cinematográficos. Se isso é verdade, a que se deve esse movimento?
Acho que vem acontecendo uma mudança de mentalidade sobre a importância da preservação do patrimônio audiovisual brasileiro. E isso tem consequências claras. Uma das mais evidentes é o retorno — e o desejo de retorno — de filmes brasileiros que estão fora de circulação há bastante tempo.
Acredito também que a restauração é uma das facetas mais visíveis do trabalho de preservação audiovisual. Ela chama muita atenção e acaba sendo um chamariz para que as pessoas entendam, de forma mais ampla, a relevância da preservação. A partir de um processo específico, conseguimos atrair o olhar para toda a área, e isso eu acho muito positivo.
A restauração de filmes é uma das facetas, mas há outros aspectos em curso. Existem diversos projetos incentivados pela Lei Paulo Gustavo, como a digitalização de acervos, que também é uma parte importante desse processo.
Fringe: E quais são os desafios dessa área? Para onde precisamos caminhar?
O buraco ainda é mais embaixo. Precisamos de recursos para a infraestrutura dos arquivos, algo que tem bem menos visibilidade. Tudo precisa caminhar da melhor forma possível. Mas acredito que o retorno desses filmes tem contribuído para que esse assunto venha à tona de maneira mais ampla, atingindo não só as pessoas diretamente interessadas em cinema, mas a sociedade como um todo. Isso ampliou o interesse e lançou luz sobre outras questões menos visíveis, como a infraestrutura dos arquivos.
A infraestrutura dos arquivos é muito desigual no Brasil. Temos, por exemplo, a Cinemateca Brasileira — um dos maiores arquivos da América do Sul e da América Latina —, mas também há arquivos de menor porte, com outras necessidades. Precisamos equalizar essas questões. A Cinemateca tem acervo de filmes, documentos correlatos, cartazes, roteiros, salas de exibição, enquanto outras iniciativas independentes, comunitárias e regionais também têm grande importância e merecem recursos para atuar adequadamente.
O trabalho invisível feito dentro dos arquivos também precisa ganhar relevância. Uma rede nacional conectando os acervos seria essencial. Esse é um ponto pelo qual nós, da área de preservação, sempre batalhamos muito. Sempre destacamos a importância de uma rede nacional de arquivos e acervos audiovisuais.
Fringe: Temos casos recentes de apoio de empresas multinacionais à gestão e preservação de acervos. Isso é importante? Por quê?
Aportes financeiros são sempre bem-vindos, mas é preciso avaliar quanto, como e quais são as contrapartidas desses recursos. Para mim, como profissional e também pessoalmente, acredito que a preservação do patrimônio audiovisual brasileiro é um dever do Estado. Dado que o Brasil tem dimensões continentais, é claro que é difícil dar conta de tudo. Por isso, todas as parcerias são bem-vindas. Mas não acredito que a preservação deva ser uma atividade voltada ao lucro. Quando entramos em parcerias, é preciso compreender que essa é uma atividade que, muitas vezes, não gera retorno financeiro imediato — e nem deve ser essa a prioridade. Por isso, acredito que o Estado brasileiro tem que ser o principal pilar da preservação do patrimônio.